domingo, 25 de janeiro de 2009

São Paulo, por 365

O maior presente que posso oferecer à Cidade de São Paulo hoje, dia em que a capital completa 455 anos de existência, é um resgate de duas canções da banda 365, cuja carreira se iniciou na década de oitenta e dura até hoje: “São Paulo” (no link, executada ao vivo no programa Musikaos), de Finho e Ari Baltazar, e “Vila Morena”, de Zeca Afonso. Além dessas, muitas outras letras da banda homenageiam, direta ou indiretamente, São Paulo. Para respeitar o tamanho reduzido que os textos de blog têm de ter, ficam para outro dia as análises de “Soneto desertado”, gravação de um poema de Glauco Matoso, “Sambódromo” e “Asa Branca”.

“São Paulo”, gravada recentemente pelos Inocentes, é uma das melhores expressões roqueiras – se não for a melhor – da capital. A canção do 365 é iniciada por um dedilhado que sugere a solidão paulistana, talvez aquele sentimento de solidão que toda grande cidade contenha; a letra que confirma essa sensação: “Tem dias que eu digo ‘não’ / Inverno no meu coração / Meu mundo está em tua mão / Frio e garoa na escuridão...”. O perfil tradicional da cidade de São Paulo, que contamina quem nasce por aqui ou que fica aqui por muito tempo, está todo nesses versos: São Paulo é a cidade do “não”, que pode ser interpretado, incialmente, como a experiência do isolamento inevitável para quem mora numa cidade desse tamanho, onde, embora caminhando ao lado de milhares de pessoas nas ruas, experimenta-se a sensação urbana do anonimato; o clima frio contamina o mundo subjetivo dos habitantes, fazendo que o eu que canta experimente o “inverno” em seu coração – São Paulo, sem dúvida, não atrai as pessoas por ser um balneário, nem é famosa pela hospitalidade aos visitantes ou moradores (temos por aqui, no máximo, a fama pela “qualidade dos serviços”, o que é bem diferente); esse mundo interno, subjetivo, do eu que canta – que pode ser ainda maior que a própria capital – reclama a falta de alguém que não está ao seu lado, e essa ausência se acentua pelo frio, pela garoa e pela escuridão. Note-se bem: “a terra da garoa” torna-se espaço de desolação – o que levaria à conclusão precipitada de que “São Paulo”, do 365, não é uma homenagem, mas uma execração à cidade.

A explosão de baixo, guitarra e bateria não desfaz necessariamente essa hipótese, como se começasse um novo dia, com o trânsito caótico se acentuando, a rádio gritando “Vambora, vambora / tá na hora vambora”, como se a cidade, ente à parte de seus habitantes, despertasse e fizesse despertar, correr, competir, predar, isto é, batalhar pela vida na “selva de pedra”; em oposição, os primeiros versos se repetem, numa expressão do que é viver nessa cidade – onde o mundo exterior, objetivo, nos apressa, nos faz devorar uns aos outros, mas nosso mundo interno segue desolado, sozinho. “Quem é seu dono? / Ninguém / São Paulo” são versos em que se acentua a idéia de que, na cidade, impera o “ninguém”, o “não” – em suma um vazio impessoal, que os moradores da cidade não conseguem superar. São Paulo seria, assim, a cidade da distância entre as pessoas, toda trabalho, frieza e sobrevivência.

Acontece que alguns versos parecem apontar para outra direção. No trecho “Sem São Paulo / O meu dono é a solidão / Diga sim / Que eu digo não”, o eu que canta parece inverter os sentidos do "não" e nos contar que se vê como parte integrante da cidade; mais fundamentalmente: o eu escolhe dizer não em oposição ao sim, isto é, opõe-se àquele cotidiano caótico e alienante, expresso pelo sim, pela aceitação de tudo que a metrópole-monstro impõe. Em outras palavras: quando se propõe a dizer não, o eu faz valer, sobre a São Paulo que o oprime, as suas próprias convicções, o seu próprio mundo interior, ressignificando os primeiros versos. E é daí que vem a afirmação final (“Desperta, São Paulo”) em que a cidade não é mais aquele ente opressor, mas o espaço cujos habitantes devem “despertar”, ou seja, desalienar-se, fazer valer as vontades da maioria.

A leitura acima pode parecer otimista demais para o leitor. A audição da canção “Vila Morena”, entretanto, talvez o faça entender entender o que quero dizer. Dê uma olhada nos versos “Grândola, Vila morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade”. Aos olhos desesperançados dos viventes do século XXI, tempo da ausência de alternativas frente ao neoliberalismo que devora as pessoas, e que as faz devorar umas às outras, a tal Grândola, Vila Morena, parece uma cidade de sonhos, espécie de Utopia, de Thomas Morus, mas à moda popular e coletiva.

Trata-se, na verdade, de um lugar homenageado pelo compositor português Zeca Afonso na canção que o 365 regravou. O ideal popular, já visível nos versos transcritos acima, está mais flagrante nos que vêm a seguir: “Grândola, vila morena / Em cada esquina, um amigo/ Em cada rosto, igualdade”. Grândola é uma cidade portuguesa na região do Alentejo. A canção foi uma das senhas transmitidas no rádio pelo Movimento das Forças Armadas portuguesas para dar início à Revolução dos Cravos, em 1974. Não vou entrar em detalhes, porque seria extenso demais, mas esse movimento, cujos desdobramentos estiveram muito associados ao Partido Comunista Português, libertou Portugal de um regime autoritário de mais de 40 anos. Gosto de entender a regravação dessa canção pelo 365 como a expressão do sonho de que, um dia, São Paulo, possa ser uma cidade em que o povo seja quem manda, uma terra de fraternidade, que em cada esquina guarde um amigo; uma terra de igualdade, cuja população despertou e disse não à opressão.

Neste tempo, em que impera o “sim” alienado e individualista, essas duas canções do 365 são o melhor presente que posso oferecer a São Paulo, com essa minha vontade já datada, mas nunca morta, de que elas sensibilizem e mobilizem a população.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Renovação da Métrica do Grito - pausa para metalinguagem

O pessoal do Showlivre, num trabalho belíssimo, que ainda está em processo, reformulou todo o site e recriou o conceito das colunas - que deixam de sê-lo para tornarem-se blogs, como este aqui. Ganham os colunistas, que podem escrever mais e postar sempre, sem depender do pessoal do Showlivre para que os textos vão ao ar; ganha o Showlivre, com a possibilidade de abrir espaço para uma maior diversidade de colunistas e, por conseguinte, de conteúdo; ganham os leitores, com maior possibilidade de entrar em contato com os colunistas.
Acontece, entretanto, que deixar para trás os textos antigos era abandonar no pó virtual um trabalho que adorei fazer - e que contribuiu demais para minha pesquisa, na época do mestrado. Então fica combinado o seguinte: todos os textos que estão publicados antes deste aqui são aqueles que foram publicados na antiga coluna do Showlivre. Espero que, se não tiver utilidade para alguém, esse arquivo de textos do passado sirva, ao menos, para que eu me organize.
Só de reler os primeiros três, minha autocrítica falou muito alto, sugerindo-me que eu os fizesse desaparecer misteriosamente. Mas desisti dessa idéia, porque vejo os textos como retratos de mim mesmo, das reflexões que eu fazia naquelas datas - e o conjunto dos textos como o processo em que me vi envolvido nos últimos dois anos. O leitor decida se os textos antigos - e os novos - têm algum valor.
Todos os textos publicados depois deste aqui pertencem ao novo formato da Métrica do Grito, o de blog. Já prometi mais de uma vez ser mais breve na redação, mas a intenção da coluna permanece neste blog: a análise, em detrimento da superficilidade; a compreensão das canções de rock brasileiro e suas relações com nossa literatura, deixando pra lá detalhes sórdidos ou bizarros da vida pessoal dos músicos e escritores. Para manter esse perfil, meus posts precisam ser um pouquinho mais longos do que rezam as cartilhas de publicações na internet.
Ao trabalho!

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Mutantes, retrospectiva e perspectivas

Escolhi o Thunderview com Sérgio Dias Baptista, guitarrista dos Mutantes, como o melhor programa do Showlivre feito em 2008. Não o fiz com pouca dor no coração: tive de deixar de lado algumas edições queridas do Estúdio Showlivre, outras do Mão na Massa e a cobertura de alguns eventos. Acontece que os Mutantes são, como já escrevi em uma coluna anterior, responsáveis pelo processo de assimilação do rock à canção brasileira. E a entrevista de Thunderbird com Sérgio Dias, além de confirmar essa hipótese, deixa algumas lições para todos os que pensam a cena musical no Brasil hoje e participam dela de alguma maneira. Daí a minha escolha: além de ensinar muito a respeito da história do rock brasileiro, a entrevista ajuda a analisar a cena atual e a traçar algumas hipóteses para o futuro próximo.

Os Mutantes ainda são, nas palavras de Thunder, “a principal referência do rock nacional”. Muito disso se deve, primeiramente, ao ineditismo de fazer rock com elementos de música brasileira, sobretudo nos primeiros trabalhos, sob a influência tropicalista. “Dois mil e um”, de Tom Zé e Rita Lee, (no link em versão recente, dos últimos shows que os Mutantes fizeram), por exemplo, é canção marcante, sobretudo pela associação da sonoridade caipira com o rock. Além disso, no mesmo disco, de 1969, uma versão de “Tintarella di luna” – já vertida para a língua portuguesa por Celly Campello, considerada a primeira roqueira do Brasil – marca outro motivo pelo qual se pode medir a relevância mutante: é dialogando com o passado, sem repeti-lo cegamente, que se cria tradição de rock no universo da canção nacional. A versão dos Mutantes reconstrói o “Banho de Lua” de Celly Campello, conferindo-lhe elementos vigorosos e dando-lhe peso suficiente para ecoar, também, sonoridades que vinham de fora – Beatles, Stones e outros monstros sagrados e consagrados. Em suma, Rita, Arnaldo e Sérgio não repetiam o que se fazia no exterior, mas usavam as influências estrangeiras e nacionais para criar rock brasileiro – procedimento bem ao gosto tropicalista, inspirado, em boa medida, na Antropofagia oswaldiana. Para Sérgio Dias, “tudo o que está acontecendo hoje fora do Brasil é o que aconteceu aqui antigamente”. De fato, o Brasil talvez seja um dos primeiros países a incorporar o rock como gênero musical, metamorfoseando-o (“mutanteando-o”, se quiséssemos um neologismo a contento) e aclimatando-o aos elementos locais, o que tem ocorrido cada vez com mais freqüência no exterior.

Mas os Mutantes são ainda mais do que tudo isso. Já na década de 60, eles ensinavam que rock and roll se faz com a adequada calibragem entre talento musical e recursos técnicos. Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee são talentos que dispensam comentários, sempre acompanhados por músicos, arranjadores e técnicos de som de primeira linha – Rogério Duprat, Liminha, Dinho Leme, Pena Schmidt, cometendo o pecado de deixar de lado muita gente boa que passou pela banda; além de todos eles, havia ainda um outro mutante, de bastidores, Cláudio César Baptista, que preparava os instrumentos artesanalmente, com uma qualidade de dar inveja a qualquer megaempresa norte-americana. Quem pesquisar a história da banda descobrirá que, nas muitas formações que tiveram, os Mutantes sempre se caracterizaram pela busca da excelência técnica.
É dessa constatação que vem a fala de Sérgio Dias de que, hoje, os Mutantes são muito melhores, porque contam com uma aparelhagem que responde às necessidades dos músicos. “Antigamente, a gente não tinha o poder de fogo que tem hoje, então a gente pode tocar tudo como era; a concepção inteira está no palco”: as restrições técnicas das décadas de 60 e 70 resultaram em improvisações nos espetáculos ao vivo para cobrir os limites tecnológicos – como acontecia, também, com os Beatles, por exemplo; hoje, os limites quase inexistem, e os Mutantes podem mostrar todo o talento que sempre tiveram. Não nos esqueçamos, ainda, de que a banda foi também uma espécie de usina de talentos, cujas experiências orientaram, de certa forma, a história do rock nacional, não só na carreira solo de Rita Lee, mas também com as produções de Liminha e Pena Schmidt.
Mas talvez a fala mais curiosa da entrevista seja mesmo a de que o sucesso atual dos Mutantes no exterior se deve à atualidade daquilo que eles faziam há quarenta anos – afirmação que impressiona e até assusta, principalmente se nos lembrarmos de que os brasileiros padecem de um complexo eterno de inferioridade, sobretudo no que diz respeito à cultura, ainda mais aquela que se produz em língua portuguesa. Resistimos a acreditar que o que os Mutantes faziam no Brasil no final da década de 60 é extremamente atual em termos globais; resistimos a nos sentir vanguarda artística em alguma coisa – até naquilo que fazemos de melhor, que é a nossa canção.
Pois bem, está na hora de nos acostumarmos: somos bons, talvez os melhores do mundo, em composição de canções, inclusive nas de rock. E o sucesso dos Mutantes no exterior é apenas um indicador de que isso é verdade. Digo mais: a entrevista com Sérgio Dias Baptista nos ajuda a entender o aquecimento da cena atual da música independente no Brasil. Na picada aberta pelos Mutantes, alargada por inúmeras bandas, os independentes de hoje trabalham com a diversidade de elementos brasileiros – para comprovar, basta assistir às coberturas que a equipe do Showlivre fez dos festivais em 2008. O rock é apenas um gênero dos muitos que a canção brasileira abraça livremente, transformando-o e aprimorando-o.
Tudo isso ocorre à moda da periferia do capitalismo, é claro. O fato de as canções terem letras em língua portuguesa é uma explicação possível para o retardamento da ampla recepção dos Mutantes no exterior – mas não é mais um entrave. Segundo Sérgio Dias, nos shows recentes dos Mutantes, o público gringo enrolava a língua para tentar cantar em português. Começa a acabar, pois, a idéia de que cantar em idioma estrangeiro é a única forma de conquistar o mercado internacional. Talvez eu seja muito otimista, mas este pode ser o momento de inverter a chave do imperialismo cultural norte-americano e europeu: invadamos o mundo com a sonoridade brasileira!

Ao mesmo tempo, hoje se pode criar e divulgar canções com bastante qualidade técnica graças às inovações tecnológicas. Também começa a dar adeus – se é que já não deu definitivamente – o tempo em que, para fazer música com alguma qualidade, era preciso muito dinheiro. A cena independente deve muito de seu aquecimento e de sua qualidade àquelas inovações. Fica, então, para o futuro próximo, a expectativa de que as bandas se utilizem dessas facilidades para fazer que o nosso rock seja alçado à altura que merece: a de parte fundamental e integrante do universo da canção brasileira. Enfim: há espaço para experimentações e inovações de toda sorte; para letras em português ou em outros idiomas; há meios de criação e de divulgação dos trabalhos. Resta aproveitar o momento e enriquecer a história da canção no Brasil – e no mundo.Sérgio Dias afirmou muito humildemente, logo no início da entrevista, que os Mutantes não são donos de nada. Discordo: ao menos em boa parte, é deles a responsabilidade pelas veredas abertas à música brasileira no mercado mundial. A incorporação do rock à canção brasileira; o diálogo com o passado, de modo a criar no Brasil uma tradição ligada a esse gênero; o talento musical para fazer tudo isso, atado à qualidade técnica; as inovações e as experiências que serviram às produções futuras; a criação de letras em língua portuguesa, superando o mito de que elas não obterão sucesso no mercado mundial – todas essas são lições que podem nortear o futuro próximo da nossa canção.

“Eu humano”: poesia de rock em língua portuguesa

Se o leitor navegar pelo My Space do Andreas Kisser, terá uma das mais felizes surpresas do rock brasileiro – e mundial, porque quando se trata do Sepultura e de seus integrantes, tudo toma proporções globais. Trata-se de “Eu humano”, (no link, apresentada ao vivo no Estúdio Showlivre) canção que faz parte do primeiro trabalho solo do guitarrista, Hubris I & II. Já faz algumas colunas que tenho citado o Sepultura; afirmei, por exemplo, que a banda faz rock brasileiro em inglês e que analisaria essa declaração polêmica (que, se fosse levada às últimas conseqüências, renderia uma tese de doutorado). Mas “Eu humano” tem letra em português – e esse dado simples faz que as obras do Sepultura e de seu guitarrista ganhem complexidade ainda maior.


A primeira estrofe de “Eu humano” nada mais é do que uma seqüência de orações cujo sujeito “eu” é seguido de verbos intransitivos, isto é, verbos cujas ações não têm objeto. Traduzindo e exemplificando para quem não se lembra das aulas de gramática: nas frases “Eu ataco” e “Eu acuso”, por exemplo, as ações expressas pelos verbos não recaem sobre ninguém. Quem é que foi atacado pelo eu que canta? Quem foi acusado por ele? A impressão que fica, devido à repetição do pronome e à intransitividade dos verbos, é a de que as ações cometidas pelo eu que canta não tem destinatário específico – ao contrário: são feitas para que o próprio Eu, incansavelmente repetido, se afirme, e serão espalhadas indiscriminadamente pelo mundo em que ele vive. Beleza de composição poética, que se amarra ao título: assim é o homem, cujas ações só respondem aos interesses dele próprio, sem preocupação com os efeitos que elas terão sobre os outros.


A segunda estrofe, contudo, não repete o modelo da primeira e enriquece o texto: embora ainda seja repetido à exaustão, no início de cada verso, o pronome “eu” é modificado por outras classes de palavras, como substantivos ou adjetivos: “Eu igreja / Eu sagrado / Eu tortura / Eu escravo”. As associações, agora, são inusitadas, como acontece na grande poesia: o termo “eu” é adjetivado, por exemplo, pelo substantivo “tortura” – algo que chamaríamos de “desumano”, mas que, na canção de Andreas, é característica paradoxal dos homens e inerente a eles. O princípio de composição da letra pode então ser resumido, até aqui, da seguinte maneira: o que constrói o “Eu humano” não são só as ações que ele comete intransitivamente na primeira parte; também são da natureza desse eu as contradições enumeradas da segunda. Os leitores atentos da letra descobrirão, entre as frases e as expressões, pequenas unidades de sentido que, juntas, compõem diferentes raios refletidos pelo prisma que é a humanidade: “Eu comando / Eu proclamo / Eu reclamo / Eu estrago”, do início, ou “Eu proveta / Eu macaco / Eu planeta / Eu espaço”, da segunda parte – tentando sinalizar, como já vimos, para algo que está além do homem, mas sempre retornando a ele por meio da repetição compulsiva do pronome.


Na última estrofe, surgem, subitamente, frases mais organizadas – “Fabrico as doenças de outro mundo / Quebro os limites em um segundo / Desenho fronteiras e planto insultos / Eu sujo a minha casa num clima imundo”. Gosto mesmo é de viajar na análise e imaginar que a complexidade das frases, em comparação com as das estrofes anteriores, sugere uma pretensa evolução do Eu humano – mas que culmina, no último verso, com a retomada do pronome e com a sujeira da própria casa; está, assim, concluída a idéia de que o Eu humano, apesar da pretensão de transcender o universo particular, sempre acaba por retornar a si mesmo, à própria incapacidade de cuidar do espaço que ele, de fato, pode modificar: aquele que o circunda, a própria casa.


A multiplicidade de leituras e associações de sentido que os versos de “Eu humano” sugerem permite afirmar que estamos diante de uma letra de riqueza poética rara no rock brasileiro – basta reler a “Consideração do Poema”, em que Carlos Drummond de Andrade afirma que “As palavras não nascem amarradas / Elas saltam, se beijam, se dissolvem” para entender a habilidade de Andreas, sobretudo na segunda estrofe; é nela que descobrimos que o mesmo eu que é igreja e sagrado é também tortura e escravo. A recorrência de palavras paroxítonas, associada às rimas, garante a cadência do texto – que pode ser interpretada como expressão de que o Eu humano se repete e repete os próprios erros e contradições infinitamente, embora mude as ações e até ganhe alguma complexidade, ao final. A entonação, que vai crescendo rumo ao agudo e cujo ponto alto é o final da segunda estrofe (“Eu na guerra”), cria a expectativa de que se chegará a algum lugar – frustrada, obviamente, pela retomada final, mas sempre em aberto, porque o homem não abandona as próprias ambições.


Finalmente, o tempo utilizado em todos os verbos da canção mostra ao ouvinte como é curto o horizonte do Eu humano: só o presente, nada além dele, sem passado – o que indica que o homem, apesar de ter escrito a própria história, não aprendeu nada com ela – e sem futuro – condição bestial, que faz do homem vítima do próprio caos.


Abusei dos termos técnicos na análise das linhas anteriores para chegar à seguinte afirmação: “Eu humano” é um dos pontos mais altos da história do metal brasileiro. Andreas já tinha ensaiado os temas que explorou acima há quinze anos, por exemplo, em “Territory” – mas a letra em inglês tinha nas figuras da propaganda ou do ditador os agentes da miséria dos homens; “Eu humano” ganha em profundidade na medida em que não procura no “outro” um responsável, mas no próprio eu, o que amplia a reflexão. Mais do que isso: deixemos de lado os motivos que levaram à saída de Max Cavalera do Sepultura – afinal o que nos interessa neste texto é a obra da banda e, principalmente, de Andreas Kisser – e admitamos que, principalmente desde Against (1998), mas também antes dele, Andreas vem ganhando experiência e relevância como letrista; lembremo-nos, também, de que o último CD da banda dialogou com A Divina Comédia, de Dante Alighieri – projeto ambicioso, que merecerá coluna só para ele – e que o próximo o fará com Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, texto cujos neologismos em língua inglesa devem ter sido um bom laboratório para que Andreas criasse em português.


O movimento que faz de “Eu humano” uma obra-prima é, portanto, o mesmo que transformou o Sepultura numa das bandas mais importantes do Brasil e do mundo: a sede pela experimentação de novos temas e sonoridades, sempre à cata daquilo que a definia como banda de música brasileira, porque as letras em inglês a afastavam, de certa forma, desse universo. É sabido que foi Andreas quem trouxe muitas das influências musicais e temáticas que permitiram ao Sepultura oxigenar-se e renovar-se no álbum Schizofrenia (1987) e que culminaram com as experimentações iniciadas em Arise (1991), com “Meaningless Movements”, e aprofundadas em Chaos AD (1993) e Roots (1996) – trabalhos em que o “instinto de nacionalidade”, para plagiar Machado de Assis, batia forte, sobretudo em “Refuse/resist”, “Kaiowas” e “Manifest”, do primeiro, e em todas as canções do segundo, mas sobretudo em “Ratamahatta”, em que já se ensaiava uma aventura na língua materna.


Andreas teve mais espaço para experimentar, depois desses trabalhos marcantes, algo que levanto agora, mas cuja análise detalhada fica para uma outra vez: a idéia de que era possível explorar, em língua portuguesa, temas como alienação, violência, caos, guerra e poder das corporações. Os fãs do Sepultura hão de concordar comigo: todos tínhamos a impressão de que esses assuntos eram mais adequados à língua inglesa, às suas frases breves, sem conectivos, bem à moda das letras de metal; aos fãs desse gênero, a língua portuguesa talvez parecesse excessivamente empolada, contaminada pela linguagem nebulosa dos nossos poetas mais conservadores – sobretudo os anteriores ao Modernismo –, talvez provinciana demais para explorar aflições de ordem mundial. Pois estávamos todos errados: em “Eu humano”, mergulha-se no legado da miséria humana por meio da repetição compulsiva do pronome, do tempo verbal e das paroxítonas; observa-se com horror a eterna ambição dos homens, por meio das entonações recorrentes; lamenta-se a nossa condição paradoxal, por meio das associações inusitadas do vocabulário – todos recursos dignos das nossas melhores canções, com os quais Andreas Kisser faz surgir um novo caminho a trilhar na procura da poesia de rock em língua portuguesa.

As lições de André Midani

Um espectro tem rondado, há muito tempo, a canção brasileira: é a onipresença de André Midani. Música, ídolos e poder – do vinil ao download, lançado recentemente pela Editora Nova Fronteira, é dos livros essenciais para qualquer apaixonado por música brasileira; nele, em linguagem das mais simples, sem perder profundidade, o famoso executivo de algumas das maiores gravadoras do Brasil e do mundo conta em primeiríssima pessoa as experiências por que passou – do desembarque das tropas aliadas na França, no final da Segunda Guerra Mundial, à organização do Ano do Brasil no mesmo país, em 2005, passando por momentos relevantes da canção brasileira e latino-americana nos últimos cinqüenta anos. Ao final do texto, fiquei com a impressão de que acabava de ler uma obra de ficção, tal era a riqueza e a densidade das experiências relatadas por Midani.

Há figuras na indústria fonográfica que costumam ser demonizadas, sobretudo a dos executivos das grandes gravadoras. André Midani é certamente uma exceção nesse universo – homem de espírito sensível e libertário, tinha uma capacidade única de dar voz e ouvidos aos músicos no universo corporativo. Muitos deles não tinham nem podiam ter a visão ampla do mercado de música no Brasil – daí a importância do relato e das ações de Midani. Atribui-se a ele, por exemplo, uma frase polêmica, em plenos anos 70 – a de que o futuro da música brasileira estava no rock, o que lhe rendeu um “pito” de Vinicius de Morais, relatado no livro. A história demonstrou que Midani estava certo – e o mercado da canção brasileira, de fato, na década de oitenta, virou de cabeça para baixo graças àquele gênero.

Não são poucas as passagens do texto, em que esse natural da Síria, radicado na França – mas que se considera um “vira-lata” como todos os brasileiros – demonstra uma capacidade de análise que parece faltar a muitos de nós. Para Midani, por exemplo, a estratégia de investir apenas nos hits e não nos artistas é um dos equívocos que levou à crise atual da indústria fonográfica. Em outras palavras: investir no artista é dar-lhe liberdade de criação, de modo que construa uma carreira e, conseqüentemente, um público fiel, que renderá os tão almejados “lucros aos acionistas” e, mais importante, o meio de vida para o músico, sem que este precise fazer concessões estéticas absurdas que lhe comprometam a integridade artística.


O leitor imaginará que, na teoria, o que está escrito acima é muito bonito, mas que não tem aplicabilidade prática – e é aí que se equivoca. Para Midani, o fracasso retumbante de Araçá Azul, o mais difícil disco de Caetano Veloso (“quatrocentas mil cópias colocadas nas lojas e quatrocentos mil discos espetacularmente devolvidos”), é parte do processo criativo que resulta no enorme êxito de Jóia, do mesmo Caetano, mais tarde. Em outras palavras: o processo criativo é, antes de tudo, processo – afinal, nem todos os artistas do mundo estréiam com obras-primas e sucessos de venda. Na nossa literatura, o exemplo mais flagrante talvez seja o de Machado de Assis, cujos quatro primeiros romances podem ser considerados laboratórios, experiências para que se alcance a maturidade das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rigorosamente na mesma medida, adoro o Sepultura de Morbid Visions, mas convenhamos: ele é apenas uma imagem bastante imperfeita do que surgiria no Chaos AD e nos outros trabalhos. Mas este disco não existiria sem aquele. Então aprendamos com o mestre: a criação de arte também é processo – o problema é que a lógica do mercado, afoita pelo próximo sucesso, afoga a maioria das possibilidades de evolução dos artistas. Se não estourarem no primeiro trabalho, estão fora; se estouraram nos primeiros dois ou três, têm poucas chances de brilhar de novo – e estão fora também, porque o “mercado” exige algo novo. Ora, leitor, interrompamos essa lógica cruel – o “mercado” somos nós: paremos um pouco de querer ouvir a última canção gravada no planeta – seja ela ligada à cambaleante, mas ainda milionária, indústria fonográfica, ou ao mais independente dos universos – e ouçamos mais de uma vez as canções que aguçaram-nos a sensibilidade.

Midani demonstra que é mesmo um visionário, tendo proposto, em 1975, uma espécie de modelo do viria a ser a indústria independente de música: ao perceber que a chegada de gravadoras estrangeiras ameaçava a existência da Phonogram brasileira, que dirigia, Midani tentou preservar seus grandes nomes apresentando-lhes contratos em que eles “passariam a ser proprietários de seus discos futuros, transformando-se em pequenas gravadoras independentes. Assim, a partir daquele momento construiriam paulatinamente um acervo importante de sua inteira propriedade. Em troca, a Phonogram garantia a permanência deles, por meio de um contrato de distribuição de longo período”. Desse modo, segundo ele, os artistas poderiam, dentro de alguns anos, ser os donos de boa parte dos próprios masters. Mas lamenta que aqueles com quem estabeleceu o tal contrato tenham vendido, dois ou três anos depois, os masters de volta para as gravadoras e retornado ao modelo clássico de contrato.

Uma outra proposta revolucionária foi a abertura de uma companhia de discos completamente brasileira cuja composição de capital fosse a seguinte: 40% de investidores; 35% de artistas que assinassem com a gravadora; 25% do próprio André Midani. Não é arriscado dizer que, com um bom acordo de acionistas, a companhia teria tudo para dar certo – mas não deu porque os eventuais investidores não acreditavam que seria confiável aplicar capital numa empresa de discos cujo retorno estaria “à mercê da criatividade de artistas reputados por sua loucura e imprevisibilidade”. Aprendamos ainda mais com o mestre: transformar o artista em proprietário de sua obra e da companhia, além de remunerá-lo de forma mais justa, fugindo em alguma medida à mais-valia das majors, aproximaria o músico do universo administrativo – o que poderia, também, sem dúvida, ser uma experiência interessante. Pense o leitor no seguinte: não é difícil dizer que as grandes companhias tolhem o processo criativo dos artistas – e elas tolhem mesmo, porque têm os olhos apenas nos lucros; transformar os artistas em sócios seria, também, de certa forma co-responsabilizá-los por eventuais perdas financeiras. Seria, no mínimo, didático e salutar para todos. Estariam (estarão) os músicos prontos para essa responsabilidade?

Tenho para mim que sim: o florescimento da indústria independente, até onde posso enxergar, tem fomentado entre as novas bandas – e as mais anciãs também – uma consciência maior a respeito do mercado de música e dos próprios patrimônios musicais, o que era quase impossível no passado. Quando capitaneou a WEA no Brasil, o mesmo Midani chegou a propor que um representante dos músicos fizesse parte do conselho diretivo da empresa, outra idéia que não deu certo porque o eleito dos músicos – Chico Anysio! – não se interessou em assumir o posto. Trapalhadas – dos próprios músicos, que não se organizaram para eleger alguém que os representasse de fato – à parte, fica definitivamente registrada aqui a capacidade inovadora de André Midani em levar às mãos dos artistas o poder de decisão. Ficou aí perdida uma chance preciosa, que poderia ter contribuído, e muito, para antecipar a independência dos nossos músicos.

A leitura da autobiografia de André Midani é indispensável para a reflexão a respeito dos rumos que a canção brasileira tomou desde a década de cinqüenta. Mas é ainda mais importante porque deixa evidente que não basta aos profissionais da canção observá-la como produto – é preciso, antes de tudo, pensá-la e respeitá-la como obra de arte, exatamente como fez André Midani.

Apontamentos para uma história do rock brasileiro – Parte I – Tradição de rock

Na última edição do Pé na Porta, Clemente cobriu o lançamento do Almanaque do Rock, escrito por Kid Vinil, que já comprei, já li e recomendo a todos – especialmente os trechos a respeito do rock nacional. A erudição roqueira e a objetividade do texto, sem perda da densidade, já fazem dele bibliografia básica de qualquer fã de rock. É interessante notar, entretanto, que nas entrevistas com o autor e com o pessoal que encontrou no evento de lançamento do livro, Clemente insistiu numa frase: a história do rock brasileiro já foi feita, mas não foi escrita. Concordo plenamente. É que o texto de Kid Vinil, como todo almanaque, apesar de amplo e extremamente bem feito, tem a finalidade de apresentar sumariamente dados fundamentais a respeito do rock; falta no nosso mercado editorial uma obra de teor mais analítico do que esse, de talhe mais enciclopédico. Nem penso em me arrogar da tarefa, que exigirá pesquisa extensa e exaustiva, além de um conhecimento abrangente que não tenho, mas sugiro a seguir, para futuros autores corajosos – utilizando-me de contribuições da crítica literária – alguns pontos que, parece-me, não podem ser deixados de lado.

Antonio Candido, um dos estudiosos mais importantes da nossa literatura, afirma, de modo geral, que obras de escritores como Gregório de Matos Guerra, no distante século XVII, são o que ele chama de manifestações literárias. Sintetizando bastante, trata-se de textos que podem até alcançar bastante qualidade, mas que ainda têm como referencial a produção literária estrangeira. Para esse especialista, só temos literatura brasileira quando, em vez de produzirem por aqui obras de quilate e caráter estrangeiro, nossos escritores têm por referência outros escritores nacionais. É nesse momento que a tradição literária se forma, com autores escrevendo obras cujos temas, imagens e língua alcançam alguma repercussão no nosso público, sensibilizando-o, bem ou mal, porque, de alguma maneira, aguçam-lhe as impressões a respeito do próprio país.

De modo geral, pensando na história do rock brasileiro, acontece o mesmo: as primeiras manifestações do gênero por aqui não são quase nada além de versões das canções estrangeiras em português. Não é que não haja valor nessas manifestações: elas ganham importância pelo ineditismo, por apresentar ao público brasileiro um gênero jovem, que explodia nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, nos momentos iniciais, repete-se o que se faz fora, até que nossos grandes nomes estourem: na interpretação, por mais que doa à maioria dos roqueiros, a voz de Roberto Carlos e suas composições com Erasmo; na sonoridade eletrificada e até na invenção de instrumentos, os Mutantes, sobretudo na fase em que estavam próximos dos tropicalistas; no universo feminino, porque sem mulheres bonitas, inteligentes e rebeldes não se faz rock and roll, Rita Lee; no diálogo dos gêneros e das letras mais populares do Brasil com as ondas de ocultismo, paz-e-amor, demonologia e afins que vinham de fora, Raul Seixas. Parece-me que são essas as principais matrizes do nosso rock; gostemos delas ou não, é preciso passar por elas para entender o que se faz de rock no Brasil hoje. São esses, de formas diferentes, os nomes que dão tonalidade brasileira ao gênero estrangeiro.

Mas é só na década de oitenta que teremos o verdadeiro rock nacional, não porque esse momento seja mais especial do que outros, mas porque, fosse pela Bossa Nova, pelo Tropicalismo ou pela MPB engajada, já tinha havido por aqui algumas produções roqueiras – ou a rejeição a elas – para reverenciar ou para negar. O leitor deve notar que tentei evitar juízos de valor associados ao meu gosto ou à minha história pessoal. Quem me lê as colunas do Showlivre sabe que descobri o rock na década de oitenta; nem por isso superestimo aqueles anos. Mas me parece razoável a análise de que os primeiros que tinham um passado com que dialogar eram os roqueiros brasileiros da década de oitenta. Roberto, Erasmo, Mutantes, Rita, Raul: todos eles não viam, no passado, rock feito por aqui e, ainda que o vissem, ele era pouco mais do que uma reprodução do que se criava no exterior; coube a eles viver as experiências que devem ser relatadas nas primeiras páginas da história do nosso rock.

Além disso, também é preciso perceber que o rock brasileiro talvez seja um capítulo – longo, cheio de histórias dramáticas e divertidas, com lances de tragédia e de narrativa épica, mas ainda só um capítulo – da história da canção brasileira. É duro de admitir, mas se tentarmos observar as canções do rock nacional de oitenta com algum distanciamento, perceberemos que muito da força das composições da época vem da rejeição aos chamados “monstros sagrados” da MPB dos sessentas e setentas. Se pensarmos “de dentro para fora”, o rock foi o gênero que renovou a canção popular brasileira, num mercado saturado de amélias, banquinhos, violões, barquinhos, ritas-que-levam-sorrisos, odaras, rios-de-janeiros-que-continuam-lindos, cálices, bêbados e equilibristas. Os fãs de MPB não me torçam o nariz: também gosto dos monstros sagrados, mas é fato que a sonoridade deles já não respondia às demandas do mercado jovem na década de oitenta. A relação MPB-Rock Nacional não é de desigualdade, mas é de troca: para afirmarem-se como músicos brasileiros, os roqueiros precisavam rejeitar, ao menos inicialmente, o passado que lhes dizia pouco; os mais velhos, por sua vez, tiveram de se mexer, rever as próprias obras e verificar se ainda eram legítimos os temas e as sonoridades que os consagraram. Lembremos que Lobão rejeitava, há exatos vinte anos, a categoria “Pop Rock” no Prêmio Sharp de Música, reivindicando sempre um justíssimo lugar ao sol na apertada (ao menos para os roqueiros) praia da canção brasileira – que teve de ser invadida. E também façamos justiça à tradição de nossa canção: independentemente de gostarmos deles ou não, de preferirmos as obras mais antigas ou mais recentes, algo que Caetano e Gil sabem fazer muito bem é oxigenar as próprias criações; ao mesmo tempo, de todas as canções das décadas de 60 e 70, algumas das que mais se mantêm mais vivas são as de Chico Buarque, exatamente porque pertencem ao grupo das obras-primas, que não envelheceram com a redemocratização, o fim da ditadura e da censura.

As demandas de mercado, aliás, nos conduzem à inversão da perspectiva: observando, agora, de fora para dentro, sabemos que o rock é um gênero intimamente associado a um dos mais poderosos setores da indústria cultural – a indústria fonográfica, que está cambaleante, mas está longe de ir à lona. E, nesse sentido, com a finalidade de maximização dos lucros, o rock é um gênero que sempre esteve aberto a interferências de outros – especialmente os regionais, estranhos aos Estados Unidos e à Inglaterra, suas nações-mães. Uma avaliação da produção roqueira nas nações periféricas do capitalismo possivelmente levará à constatação de que, nelas, o rock se amalgama às manifestações musicais locais. No Brasil, a Tropicália já fazia isso nos festivais da canção: guitarras pesadas, Carmem Miranda e Jovem Guarda viviam em harmonia nas composições de Caetano, Gil, Mutantes e Rogério Duprat; Raul também se aproximou do universo brega desde muito cedo, pressagiando o Wander Wildner mais recente. Na década de oitenta, vivemos um aparente boom de rock “puro”, do ponto de vista da sonoridade; não nos esqueçamos, contudo, de que os Paralamas do Sucesso namoravam os ritmos caribenhos desde o início da carreira; Cazuza flertava tanto com a Bossa Nova e a MPB que abandonou o Barão Vermelho (quando este alçava vôos altíssimos) para imortalizar-se com canções como “Codinome Beija Flor”; a Legião Urbana, principalmente a partir de As Quatro Estações, foi moderando as canções pesadas, que, aliás, sempre estiverem ombro-a-ombro com as mais leves, como “Índios”, “Angra dos Reis” e até “Faroeste Caboclo”; Renato Russo, especialmente, encontrou no repertório italiano espaço para dar vazão a um universo passional que não existia, nem poderia existir, no rock. Até a banda brasileira que mais se aproximava do conceito americanófilo de “megabanda” tinha, no repertório do show, Secos e Molhados e Caetano Veloso: refiro-me ao RPM ao vivo, com “Flores Astrais” e “London, London”.

Um dos momentos mais férteis no que diz respeito às interferências regionais no rock é, sem dúvida, a década de 90, com o Chico Science e Nação Zumbi: Da lama ao caos é das grandes obras-primas da música brasileira – e não o seria se não fossem os elementos de rock que há ali. Roots do Sepultura é outra. Aliás, o Sepultura merece análise à parte – afinal faz rock brasileiro em inglês, afirmação que deixo para explicar outro dia, além de, nos dois últimos trabalhos, investigar o que há de rock em Dante Alighieri e Anthony Burgess. Sucessivamente, nos últimos tempos, as sonoridades e culturas regionais vêm assomando por meio do rock: os Los Porongas vêm do Acre; o Madame Saatan, de Belém do Pará; até o Ludovic tem como cenário para os monólogos dialogados de Jair uma São Paulo diferente, obscura, desconhecida.
Finalmente, apontando para a continuidade desta reflexão, o grande desafio de escrever um almanaque é fazer as escolhas do que ficará de fora. Kid Vinil acertou na mosca ao registrar bandas brasileiras desconhecidas do grande público, seja porque seus integrantes, depois, acabaram em outras bandas de maior alcance, seja porque, mesmo em escala reduzida, tiveram influência na formação do público de rock. Formação do público, composições em língua portuguesa, diferentes gêneros do rock brasileiro, importância dos canais de divulgação, suposta decadência das grandes gravadoras: são esses alguns assuntos que merecerão atenção em colunas futuras, que seguirão tentando contribuir para que se escreva uma história do rock brasileiro.

O mestre, o ócio, Canudos, a energia nuclear e Jorge Mautner

Na coluna do dia 07, o mestre Clemente Nascimento contou que lhe faltava ócio para escrever, lamentando o cotidiano vertiginoso em que todos vivemos, não só ele. O excesso de trabalho perturba as percepções, também comprometidas pela torrente inesgotável de informação: temos de conhecer todas as bandas novas, assistir aos últimos lançamentos, ir aos lugares mais badalados. Em poucas palavras, a quantidade prevalece sempre sobre a qualidade, restando pouco tempo para a reflexão e o desfrute estético e o questionamento do mundo. Euclides da Cunha, curiosamente, tinha a mesma sensação que Clemente, há mais de cem anos, quando escreveu a introdução de Os sertões: “Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade”. Euclides acompanhara a última das quatro expedições militares do governo, em 1897, a Canudos, como correspondente do Estadão, e só conseguiu publicar a obra que o imortalizaria em 1902.

Partilho da mesma sensação: perdi-me, no último mês e meio, na redação de uma monografia de conclusão de um curso de pós-graduação. Mas tinha comigo a sensação de que o mês de julho não seria perdido, porque, nele, eu também prepararia uma aula de literatura a respeito de Os Sertões, obra que não pode nem deve ser lida apenas uma vez. Trata-se de uma reflexão ainda bastante atual a respeito do Brasil, apesar de estar carregada de teorias que parecem, aos olhos do leitor do século 21, bastante preconceituosas.


Embora pouca gente tenha lido, todo mundo se lembra desse livro, dividido em três partes: “A terra”, em que o autor descreve o sertão baiano, com a intenção clara de formulá-lo como espaço inóspito e hostil em que “O homem”, da segunda parte, teve de se virar para sobreviver. Em “A luta”, Euclides relata as quatro expedições militares a Canudos – as três primeiras completamente fracassadas. Influenciado por tendências deterministas e evolucionistas do final do século XIX, o autor monta a seguinte equação: a adaptação dos habitantes a ambiente adverso, associada a circunstâncias históricas especiais – no caso brasileiro, de modo geral, a mestiçagem, o atraso, o abandono – deu origem ao conflito de Canudos. Algumas frases do autor assustam – “o mestiço é, quase sempre, um desequilibrado” é uma delas – mas precisamos entender Os Sertões como um texto em que a reflexão do próprio autor está em processo, afinal ele próprio, que acreditava na missão “civilizadora” das forças republicanas, descreve-lhes a crueldade e, em última análise, a barbárie. Não tenho espaço aqui para ir a fundo na análise da obra – nem sei ainda se sou capaz de tal tarefa – mas é preciso ficar claro que Euclides, ao longo do texto, vai, grosso modo, perdendo a crença nas forças oficiais, demonstrando, por meio de episódios como a degola dos prisioneiros canudenses, que elas não tem nada de civilizador e que, no Brasil, importamos apressadamente idéias estrangeiras, como a República, naquela altura, e as introduzimos por aqui sem considerar nossas próprias características – daí espetáculos dantescos como a Campanha de Canudos, massacres de sem-terras, estupros de mulheres que estão em pontos de ônibus e outros episódios hediondos que abundam em nossa história recente.


No mês passado, os grandes jornais noticiaram que o governo federal tocaria adiante o projeto de Angra 03, apesar de todas as ressalvas que o Ibama fizera. Não sou nenhum ambientalista, mas, pelo que pude entender, um grande problema das usinas nucleares são os detritos resultantes de sua atividade – o lixo tóxico nuclear, para o qual ainda não há destinação segura. Impressionou-me o argumento de um de nossos ministros: ora, pessoal, dentro de dez anos o homem já terá encontrado alternativa segura para esse problema; além disso, argumentava o sábio ministro, não podemos ficar para trás no que diz respeito às políticas energéticas de países desenvolvidos – cuja maior expressão são, e serão sempre, os Estados Unidos.

Euclides da Cunha estava certo: importamos alternativas e idéias de toda ordem, sem considerar o que somos. Nesse caso, é pior: depois de ler O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra, não dá mais para acreditar que a energia nuclear é uma alternativa segura. A geração de Clemente também já protestou – ouça "Chernobyl", dos Replicantes, ou "Angra dos Reis", da Legião Urbana, para entender o que quero dizer. Mas o protesto é anterior, e pode ser encontrado em dois dos maiores nomes de nossa canção popular: Jorge Mautner e seu parceiro inseparável, Nelson Jacobina.

É tentador analisar aqui o “Maracatu Atômico”, recuperado por Chico Science e a Nação Zumbi – cuja sensibilidade também já dera vivas a Zapata, Sandino, Zumbi, os Panteras Negras, Lampião e o Antônio Conselheiro de Canudos. Há, entretanto, as “Cinco Bombas Atômicas”, do mesmo autor, que me parecem mais saborosas para este texto. No mais, aquele poeta e aquela banda merecem uma coluna só para eles. (Além de um outro medo muito meu: a década de noventa está às portas de completar vinte anos, o que deve lhe render a pecha de cult em breve; daí a transformá-la em mais uma moda que precisa ser conhecida por todos falta um passo...).

Pois bem, nas “Cinco Bombas Atômicas”, Jorge Mautner sintetiza todas as aflições de Euclides e Clemente: “Cinco bombas atômicas / Em cima do meu cérebro / Quando eu era pequeno / Saudades eletrônicas / e mais: cinco bombas atômicas / De manhã muito cedo”. O leitor mais arguto já deve ter percebido: o eu que canta está bombardeado por aquilo que gosto de considerar a neurose da guerra atômica, desde criança; as saudades são eletrônicas, e me parecem similares àquela vontade incontrolável de saber “tudo o que está rolando”, aquela aflição por “estar antenado”. Em suma: o eu que canta está imerso no mundo da tecnologia e da paranóia do American Way of Life, aparentemente acuado por ele, sem saída. No plano sonoro, a repetição dos versos acima é seguida de um solo de violino elétrico – marca registrada de Mautner, instrumento em que se sumariza a capacidade desse compositor de associar o universo clássico ao popular – em que a canção lamenta aquele cerco em que se vê o eu que canta.
Na segunda parte da canção, toda essa sensação se metamorfoseia: “Da janela do quarto vejo / Você, meu grande desejo / Que eu quero engolir / Nesse próximo beijo”. Ora, nada poderia soar mais anos 60/70 – a alternativa para o “consumo” da paranóia e da propaganda nuclear é o amor, que não está na TV ou no rádio, mas num lugar que se pode observar da própria janela, ali do lado. A mesma lógica está no “Maracatu Atômico” – atrás do arranha-céu tem o céu, no meio da couve-flor tem a flor, quem segura o porta-estandarte tem arte – em que o adjetivo “atômico” perde a feição pejorativa para assumir um novo sentido, em que o desenvolvimento tecnológico assume o papel que deveria ter: o de instrumento para obter o desfrute estético, o ócio pelo qual meu vizinho de coluna tanto clamava.

De um lado, Clemente e Jorge Mautner, ambos otimistas – o primeiro mantém o bom-humor em tempos de falta de ócio; o segundo consegue ver o céu e o amor além dos arranha-céus da cidade, ainda que não haja estrelas; de outro, o ministro, também otimista, cuja fé no desenvolvimento de um destino seguro para o lixo nuclear me parece no mínimo duvidosa, eivada de interesses de outra natureza; de outro, Euclides da Cunha – que termina Os sertões com apocalípticas “Duas Linhas”, em que deixa em aberto toda a fé na civilização, afirmando que ainda não existe um psiquiatra para as loucuras e os crimes das nacionalidades.

O apresentador do Showlivre estava coberto de razão ao dizer que a celeridade de nossos tempos embota os sentidos. Não temos tempo para ler um livro como Os sertões, porque temos de ler e ouvir os últimos lançamentos estrangeiros, não para degustá-los ou refletir sobre eles, mas para dizer que os conhecemos (há também algo de Adorno nesta reflexão, mas citemos um mestre de cada vez). Não temos tempo para lembrar que Fritjof Capra, os Replicantes, a Legião Urbana e, antes deles, Jorge Mautner já nos alertavam dos males da energia nuclear, porque temos de ser uma nação desenvolvida, alinhada com o que se faz de mais moderno, lucrativo e produtivo no mundo. Vivemos num tempo em que imaginar uma sociedade mais solidária é utopia – no pior sentido que essa palavra pode assumir, o de “sonho impossível” – mas em que contar com a possibilidade de destinação do lixo nuclear é política de estado. Lembremos que, há mais de vinte anos, não desenvolvemos tal tecnologia, apesar de todos aqueles alertas, de todos os acidentes, de todos os males.É que ainda não existe um psiquiatra para as loucuras e os crimes da humanidade.

Versos e anverso de Wander Wildner: a revolução pelo rock brega, de Sandina a Juliana

Talvez uma coluna a respeito de Wander Wildner tenha de ser escrita em duas partes: uma primeira, indissoluvelmente associada aos Replicantes, histórica banda punk gaúcha dos anos 80; a outra, a respeito dos trabalhos mais recentes do compositor, em que influências de toda ordem se amalgamam, do brega aos ritmos latinos, com letras em espanhol e em português. Uma análise rápida – e, na minha forma de ver, equivocada – desses dois momentos poderia levar à conclusão apressada de que a obra de Wildner, e até ele próprio, “evoluíram” da revolta adolescente do movimento punk à maturidade da fase atual, em que as canções estão revestidas de outros gêneros. Os fãs mais fiéis dos Replicantes, por outro lado, talvez sintam que a obra não tenha evoluído, mas regredido, abandonando a pretensa “pureza” do punk rock.


Rejeito as duas hipóteses: é certo que o trabalho de Wander Wildner mudou – e ainda bem. Na hoje tão celebrada década de oitenta, as rádios brasileiras foram saturadas com apenas um gênero, o rock, e, por mais que eu goste dele, imagino que a diversidade cultural de nosso país acabaria empobrecida se ele mantivesse a hegemonia por muito mais tempo. Nada mais natural, portanto, que nossos roqueiros, depois do apogeu, da experimentação e até da exageração do gênero, singrassem outros mares. Não há aí, entretanto, “evolução” – no sentido de “melhora”; o que há é um processo natural, sobretudo no universo brasileiro e múltiplo da canção. Me parece, ao contrário, que, apesar das diferenças marcantes entre uma fase e outra de Wander Wildner, há algo que permanece: o inconformismo, a liberdade de pensamento, que critica a tudo e a todos, a rejeição aos “casos de sucesso”, aos modelos e produtos da indústria cultural.

Lembremo-nos, por exemplo, de “Surfista Calhorda” (no link ao lado, executada na Virada Cultural, pelos Inocentes e por Wander Wildner) talvez a canção mais emblemática dos Replicantes. Ali, repudiava-se o surfista do título, espécime repugnante das elites brasileiras mais desprezíveis, daqueles que vivem de heranças milionárias, não produzem nem criam nada, e só desfilam com a “Prancha importada”, o “Corpo de atleta e o rosto de baby Johnson” para impressionar as menininhas. Em suma: a versão oitentista de uma celebridade, cuja felicidade e relevância na “alta sociedade” depende da exposição nas colunas sociais, sempre com o rostinho bonito, maquiado de uma moda qualquer, desde que seja a última. Naquela época, o projeto era fazer revolução por meio da música: ainda se respiravam os ares das Diretas Já, do processo de redemocratização, do fim da censura. Havia, em suma, esperança de que o Brasil podia mudar, daí a postura agressiva das canções. O disco de que mais gosto, as Histórias de sexo e violência, trazia uma carga de questionamento que assustará a maior parte das bandas de hoje, mais preocupadas com as próprias subjetividades do que com o mundo que as cerca; é esse o disco de “Chernobyl” (dos atualíssimos versos “Chernobyl não foi suficiente / Será preciso um acidente em Angra” e “Alguns setores civis e militares / Já defendem a bomba atômica / Estão explorando a Serra do Cachimbo / E acabando com a Amazônia”), de “Tom e Jerry” (“Capitalismo e comunismo são disfarces do fascismo”, “Moralismo e censura são as facas do inimigo”, “Consumismo e egoísmo são as drogas do sistema” com o recado final “Seja punk mas não seja burro”) e, principalmente, de “Sandina”.

“Sandina”, recentemente regravada pelos Inocentes, é capítulo especial na história dos Replicantes, porque era uma canção de amor (não a única, mas era a mais marcante) em meio a todo o mundo cão descrito nas Histórias de sexo e violência. Ali, o eu que canta chorava a ausência de uma garota que o havia abandonado para lutar na Revolução Sandinista, de caráter popular e socialista, na Nicarágua. Era uma visão que nem a MPB de protesto tivera: no engajamento revolucionário, há um preço afetivo a pagar, que expandia o universo de “Sandina” para além das palavras de ordem, por meio dos versos “Todo mundo vai embora / Todo mundo tem sua hora”.

Esses dois versos, muito próximos dos ditos populares, parecem-me prenúncio do que ocorrerá com a obra recente de Wildner, em que, nas letras, as frases do senso-comum, do cotidiano, se misturam a versos irônicos e escatológicos, sempre na mesma chave de “Surfista Calhorda”, mas sem a agressividade do refrão; no plano musical, ao tradicional baixo-guitarra-bateria sujos do punk rock associam-se outros instrumentos, numa riqueza e até exagero de arranjos que remetem ao universo brega. Em palavras muito simples: a ironia continua existindo – afinal, que dizer dos versos “Dentes bonitos me dizem pra ter / um sorriso colgate pra sair com você /Mas eu pergunto até quando você não vai ver, / que a verdade está nesses dentes mordendo você / Não vou gastar meu dinheiro no dentista pra te agradar, / não vou colocar dentadura postiça só pra te conquistar”? –, mas a agressividade, que era trazida principalmente pela dicção punk, está amenizada, no melhor sentido que essa palavra pode ter, pelo ritmo, e principalmente pelos efeitos de humor das letras. O amargor deixado pela Sandina do passado – cujo nome sempre me faz lembrar sandia, feminino de sandeu, que significa parvo, tolo, insensato – dá lugar ao amor pueril à Juliana da canção “O sol que me ilumina”: ela é educadora infantil, atriz de teatro, cujas palavras levam o eu que canta “ao paraíso”. O sorriso dela é o sol que o ilumina, num refrão de linguagem extremamente simples, popular; e nem essa canção escapa à acidez do humor wildneriano: ele pede à Juliana que lhe conte sobre Freud, “aquele velho louco e cheirador”.

A opção pelo ritmo brega – que poderia ofender os roqueiros mais puristas – é a essência e o ponto alto da obra recente de Wildner. Primeiramente, porque remete à assimilação do rock à canção popular brasileira. Luiz Tatit, no livro O século da canção, explica que, na década de oitenta, o rock brasileiro tomou de assalto as rádios do país; nada mais natural que, num país de diversidade musical como o nosso, ocorresse a distensão desse processo – e uma conseqüente “breguização” do nosso rock, deixando claro desde já que esse termo não é pejorativo, só aponta para um processo, bem grosso modo, de suavização (Tatit chama de passionalização, mas não vou explicar os termos técnicos aqui) do gênero, permeável que ele é a características regionais. Ponto para Wildner, cuja obra é uma das mais acertadas nesse sentido.

Mas o grande mérito de associar o rock aos ritmos considerados bregas foi declarado pelo próprio Wildner: ao fazê-lo, o compositor traz um aspecto rigorosamente popular brasileiro a esse gênero internacional. É exatamente o que ocorre na literatura considerada culta ou erudita que, a partir do Modernismo, passa a se valer dos registros populares para tornar-se mais autenticamente brasileira. São as influências facilmente observáveis dos vocábulos, dos ditos, dos causos – no caso da canção, dos ritmos – rigorosamente populares, cujos exemplos mais fáceis são as influências dos autos de natal em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, das narrativas orais mineiras em toda a obra de Guimarães Rosa, do circo em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Já disse em colunas anteriores que a literatura popular em versos, a literatura de cordel, na medida em que foge aos moldes da arte de origem burguesa, pode ser considerada foco de resistência aos moldes impostos pela indústria cultural; não será muito diferente do que ocorre no trabalho atual de Wander Wildner, como ele próprio afirmou no último Estúdio Showlivre: por meio da associação do brega ao rock, alcança-se uma canção verdadeiramente brasileira, contrariando o falso bom gosto de nossa elite e de nossa classe média, mais afeitas aos últimos sucessos limpinhos e bem-comportados que a indústria fonográfica lhes oferece.

Na terça-feira, Wander Wildner afirmou que desistiu do sonho de mudar o mundo, malogrado já na década de oitenta, e que agora tem feito música pra se divertir. O leitor não se deve deixar enganar por mais essa ironia wildenriana: o rock brega que esse compositor tem produzido não só consagra definitivamente a associação do rock à cultura popular brasileira como também lhe reforça o caráter de resistência ao sistema – exatamente o mesmo projeto revolucionário do passado, nos Replicantes, só que agora feito com elementos rigorosamente nacionais, que, sem diminuir a intensidade da crítica, revestem-na de uma mordacidade ainda maior, disfarçada de bom humor.

O fantasma de Padre José de Anchieta na Virada Cultural (ou as perspectivas da canção independente brasileira em estilo inspirado em Mário de Andrade)

Os leitores mais assíduos desta coluna hão de lembrar que me encontrei com o fantasma de Mário de Andrade, durante a gravação do DVD dos Inocentes. Foi experiência única: juro que vi aquele poeta e pesquisador da cultura popular brasileira, primeiramente, assustado com a barulheira das guitarras e o acotovelamento dos punks mais jovens; depois, já convencido de que o poeta que ali cantava e de que o público que ali berrava eram tão brasileiros quanto ele, deixou-se levar, cerrou os punhos e bradou Pânico em SP – só não digo que o fez “a plenos pulmões” porque o fantasma de Mário de Andrade não os tem, e, se os tivesse, não seriam plenos, desgastados que estariam do cigarro. Não disse a ninguém que o poeta estava ali – tive a impressão de que ele não queria ser reconhecido, nem queria roubar a cena dos Inocentes: ouviu o som, pulou e gritou bastante, mandou um beijo, de longe, para o Clemente, que acenou agradecendo, e foi-se embora, cotejar os resultados da pesquisa sobre música popular que fez com aquela forma tão explosiva de canção. Tive medo: somente eu teria visto o líder modernista no meio do êxtase do público? Era alucinação, ou eu o vira de fato?

Deixei pra lá essa história, que não sou de dar bola às coisas do outro mundo. Mas elas insistem em me seguir. Num sábado recente de calor infernal, pensei em dormir no início da noite, curtir meus cachorros, acordar cedinho no domingo e tentar levar uma vida normal; revirando na cama, meio acordado, meio dormindo, tive a impressão de tomar um cutucão áspero, como se alguém tivesse usado um longo graveto de madeira cheio de areia para acordar-me. Aceitei: era um sinal. E lá fui a um show do Ludovic, aberto pelo Madame Saatan, onde encontrei Diogo do Los Porongas e conheci o pessoal do Macaco Bong. Fosse quem fosse o ser que me tivesse acordado, por que teria me mandado ali? Tomei coragem e disse ao acreano, depois de umas cervejas, que o rock independente brasileiro tinha força para minar a pasteurização e a alienação engendrada pelas grandes gravadoras, para conscientizar e sensibilizar o público, para mudar o Brasil – talvez o mundo.

Mesmo cutucão na terça-feira: era dia de assistir ao Julia Car na choperia do Sesc Pompéia, com a participação do Clemente. Depois do show, aprendi com o mestre, a quem ofereci uns chopes: “A cena independente hoje é mais forte do jamais foi; o que falta é criar uma indústria independente”. Tomei os chopes e fui para casa.

No sábado, dia da Virada Cultural, quase dormindo, ouvi frases em tupi sussurrando-me ao ouvido; os cachorros latiram, sinal aziago, pulei assustado da cama: seria o fantasma do poeta modernista? Não dormia, não dormia, não dormia: vou pra Virada, ao menos divido a insônia com mais um milhão de pessoas. Acordei a mulher, pegamos o metrô. E foi no Pátio do Colégio, berço da cidade de São Paulo, que entendi tudo que acontecera comigo ao longo daquela semana.



Primeiro: foi lá que arrumei o que fazer ao longo de toda a semana seguinte – pesquisar as bandas instrumentais independentes que têm surgido e eu não conhecia. Assustei-me: o fantasma, ou o que quer que tenha me acordado ao longo da semana, poderia ser algum dos integrantes do Trilöbit, todos eles extraterrestres. E perguntei assim: estará o público pronto para bandas cujas canções não têm letra? Concluí que sim, já que muitos dos que estavam por ali vibravam com os alienígenas. E entendi da seguinte maneira: o que talvez os independentes ainda estejam descobrindo é como formar público – e perceba, leitor, que formar público é diferente de ganhar público. Na indústria fonográfica tradicional, as canções são produtos; o capital destinado à produção é investimento; a diversidade de gêneros (que no fundo repetem a mesma coisa) é mix de produtos; os ganhos auferidos ao final são lucro ou retorno sobre o investimento. Ora, já vem se delineando – espero que já venha se delineando – na música independente uma outra lógica: as canções ou músicas são obras de arte; a produção, de custos baixos e de qualidade, é sobretudo resultado de paixão; a diversidade é condição necessária, já que a pretensão não é fazer que o artista se torne produto consumível, mas que ele seja admirado pelas qualidades estéticas intrínsecas a sua obra; a grana obtida ao final é ganha-pão que dá vazão a mais criatividade. E essa é meio que uma síntese das coisas que eu tinha pensado no dia em que encontrei Diogo dos Los Porongas, que, não demorou muito, subiu no palco e bradou, para o público que se avolumava a olhos vistos e para todos os fantasmas que dormem na cripta da Sé, perto dali: “Esta é a prova de que não é preciso depender de grandes gravadoras para fazer música no Brasil! Viva a internet!”. Aí entendi: o acesso barato às tecnologias de gravação e a internet, que favorece a difusão, fazem que a parafernália da indústria fonográfica possa ser dispensável.


O problema foi que Diogo gritou alto, mas tão alto, que despertou fantasmas demais – inclusive aquele que me cutucara a semana toda. Já havia na frente do Pátio do Colégio caciques indígenas, bandeirantes, degredados e pessoas queimadas pela inquisição. E junto a esses fantasmas todos, na frente do antigo colégio dos jesuítas, eu vi – duvidei de meus olhos, mas eu vi mesmo, e juro que não havia tomado nada – eu vi o fantasma do Padre José de Anchieta. Ele trazia nas mãos o graveto que usara para escrever na areia da praia; e sorria, porque começava a entender os equívocos de seu tempo. José de Anchieta reviu a própria obra – ele, que chegou a escrever autos em língua tupi para levar a fé cristã aos indígenas, percebeu que lhe faltou fé para acreditar que nesta terra a diversidade faria milagres. E dizia a canção: “Tudo ao contrário então / Tudo à vontade então”. E o padre sacou que o público que se agrupava por ali tinhas as linhas de erê tatuadas nas costas, como havia cantado uma menina, dias antes, no SESC Pompéia. E percebeu que o idioma dos indígenas que ele tentara aculturar dava origem ao nome do conjunto que ali tocava.
Ora: eu passara vontade de falar com o fantasma do Mário de Andrade; não deixaria passar a chance de bater um papo com o Anchieta. Diria a ele que não se impressionasse: as mulheres tinham alcançado um papel fundamental no mundo, eram poetisas, tinham a chance de expressar-se, cumpriam papel fundamental na nova canção independente brasileira – elas eram consideradas gente, eram respeitadas, assim como os povos escravizados e dizimados pelos europeus. Mas a multidão crescia, Diogo urrava no palco, as pessoas não paravam de chegar e dançar e pular. E eu precisava dizer ao padre que aquela cidade, que começara numa escola jesuíta na época dele, hoje tinha quinze milhões de pessoas, mas era ainda pequena para abrigar a multiplicidade de urbanidades que se agrupavam ali – eram acreanos, paraenses, cariocas, além dos paulistanos, mas também sul-mato-grossenses, extraterrestres, gaúchos, nordestinos, todas essas pessoas do Brasil, de norte a sul, rumo ao cruzeiro; eram urbanidades amazônicas, do cerrado, do sertão, do litoral, do concreto mesmo de São Paulo, todas essas urbanidades. Anchieta acenou para o Diogo, que respondeu; o sacerdote, então, voltou as costas para mim, dirigiu-se para o interior da escola e eu gritava, Padre, Padre, por que eu vejo todos os fantasmas de escritores, mas eles só acenam para os vocalistas das bandas?, e era essa a pergunta que eu precisava que fosse respondida, porque eu já havia entendido, e me passava pela cabeça naquele exato momento, que a nova canção independente brasileira tem autonomia para criar, mas tem pela frente grandes desafios, eu não queria estar na pele dela, o primeiro desafio é a formação de um público que não procure estrelas, mas artistas; que queria desfrutar de obras de arte, não consumi-las; o segundo é o máximo aproveitamento das tecnologias disponíveis para a criação e a divulgação de suas obras, sem repetir os vícios da grande indústria fonográfica; o terceiro é lutar cada vez mais pela profissionalização dos músicos, sem explorá-los, sem lesar o que eles têm de mais genuíno, oras, sua arte; o quarto é fazer que essa profissionalização componha o que o Clemente chamou de criar uma indústria independente – toda composta numa lógica nova, sem que músicos e suas obras sejam entendidos como produtos, formando um público que aprecie a arte. E tudo isso eu pensei num átimo de segundo, enquanto gritava Padre, Padre, por que eu vejo todos os fantasmas de escritores, mas eles só acenam para os vocalistas das bandas?, e ele voltou-se para mim e respondeu, Ora, uns homens são como antenas receptoras das expectativas, das aflições, dos amores e das contradições do seu tempo, é a esses que se chamam trovadores, poetas, hoje cancionistas, aqui os roqueiros independentes, é a esses homens que nós, os fantasmas, acenamos (eu achei esse jeito de falar muito moderno para um padre, acho que o rock não lhe fez bem, eu esperava que ele me respondesse em português arcaico). E foi-se o padre. E fiquei eu com um monte de teorias, hipóteses, dúvidas, anseios, sonhos – e fui perguntar ao Diogo se ele vira o fantasma, se acenara mesmo para o padre. Mas esqueci, e só falei de mudar o mundo por meio da nova música independente brasileira.

Saudades, Variações e pílulas de infelicidade

Uma das criações mais assustadoras da história de nossa literatura é o Emplasto Brás Cubas, medicamento idealizado – mas nunca concluído – por Brás Cubas, o defunto-autor de Machado de Assis. Trata-se de um “emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”. A crítica já analisou essa panacéia machadiana de várias maneiras; agrada-me mais a análise do crítico Roberto Schwarz, que entende que aquele “santo remédio” é, entre outras coisas, uma referência ao contraste entre as curas antigas e a medicina moderna da época (o livro foi publicado em 1881). Ao mesmo tempo, Brás Cubas nos deixa perceber que depositava em sua invenção a esperança de alcançar a fama, de tornar-se conhecido por meio de um produto-mercadoria: “o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas”. Uma confissão e tanto: o alívio dos sofrimentos da humanidade, suposto objetivo primeiro daquela criação, só reveste a ambição desmedida – de gosto bastante ianque – de celebrizar-se por meio de um produto. Alguma coisa do gênero Henry Ford, ou, mais recentemente, Bill Gates, homens cuja personalidade confunde-se com os produtos que criaram. Os “casos de sucesso” das escolas de administração estão cheios de nomes como esses.

Mas Brás Cubas está longe de ser um “empreendedor” – é escravista, preguiçoso, homem da elite brasileira do século XIX, que, apesar de aspirar à modernidade da sociedade capitalista, julga insuportáveis as idéias da livre iniciativa e do trabalhado assalariado, obrigatoriamente associadas à criação de um produto de massas, como é o emplasto (talvez por isso mesmo o defunto-autor morra “de idéia fixa”, devido à mania de tentar criar o tal medicamento, sabendo que não suportaria fazê-lo). E talvez esse seja um dos motivos pelos quais Machado de Assis é um dos nossos grandes autores: em seu primeiro grande romance, vislumbra-se, talvez, o pai dos antidepressivos – lembre-se de que o emplasto é “anti-hipocondríaco” e de que hipocondria, além de ser um estado obsessivo com a própria saúde, também pode ser entendido como “melancolia, tristeza profunda”. Produção em massa das pílulas da felicidade, sonhos de fama por meio de um produto cuja grande finalidade é a obtenção do sucesso particular, pintada com tintas “verdadeiramente cristãs”: de fato, parece-me que Machado de Assis via muito além de seu tempo.

Brás Cubas morreu, nascemos nós todos, morreram também meu pai e meu avô – este era natural de uma pequena vila no Minho, região do norte de Portugal. E lá fui eu, nas últimas três semanas, à cata de minhas raízes, com saudades de um lugar que eu sequer conhecia, rever parentes queridos de que pouco me lembrava e amigos que meu pai fez para mim há muito tempo. Fui disposto a topar com o desconhecido para encontrar-me – ou perder-me, definitivamente, de mim mesmo, numa alusão à fala de um personagem português do filme Terra Estrangeira. Eu já tinha estudado as literaturas de língua portuguesa – não só a de Portugal, mas também a dos países africanos; já conhecia alguns nomes do fado e já me encantara com Madredeus. O que eu não supunha era que encontraria no rock português um dos compositores que mais me sensibilizaram nos últimos tempos: António Variações (assim mesmo, com acento agudo, essa é a grafia de lá). Na verdade, eu não supunha que ataria, graças às composições desse roqueiro visionário português, algumas pontas da minha vida: o silêncio de meu pai, que nunca entendi e que já comentei antes nessa coluna; a melancolia de meu avô, formado em medicina, rodeado de caixas de remédio e jogando baralho.

Em poucas palavras, António Variações nasceu na mesma região que meu avô e no mesmo ano em que meu pai. Trabalhou no campo com a família, mas ainda jovem abandonou a região, que ainda vivia da agricultura; foi a Lisboa, depois a Londres, onde trabalhou como lavador de pratos, e Amsterdã, onde aprendeu o ofício de barbeiro. De volta a Portugal, quase se tornou um dos grandes nomes do rock daquele país, que, da mesma forma que o Brasil, passou por uma grande revolução comportamental na década de oitenta, em que estava livre das amarras de uma ditadura mais longa que a nossa. Teria brilhado muito mais se não tivesse morrido prematuramente – há a especulação de que tenha sido ele a primeira vítima pública da AIDS em Portugal. Já bastavam a origem e o ano de nascimento, o nome artístico inusitado e a morte prematura que me lembra Cazuza para que fosse figura de bastante interesse. Mas tem mais: as canções são espetaculares.

Eu precisaria de infinitas colunas para contar quão interessante é a obra do cara, que passa por tentativas de associação da cultura popular com o rock e por homenagens à famosa fadista Amália Rodrigues. Opto, contudo, por uma canção que me impressionou enormemente por dialogar com o emplasto machadiano: "Toma o comprimido", de 1981. Numa guitarra simples, acelerada, com pouca distorção, ouve-se: “Tu estás tão acorrentado / À sombra que tens ao lado / Não consegues apagar / as marcas desse passado / Que teimas em recusar / Mas a mistura da drogaria / E tens a cura para mais um dia”. E o refrão: “Toma o comprimido / Toma o comprimido que isso passa”. A temática é exatamente aquela que Machado propusera exatos cem anos antes (o acúmulo de acasos começa a me assustar): o medicamento como panacéia, como remédio para todos os problemas da humanidade. A canção de António Variações parte para a ironia – recurso também muito recorrente na no autor brasileiro: além de curar a depressão de “mais um dia”, o comprimido pode ser tomado pelas moças que se acham gordinhas, mas, se elas emagrecerem demais, serve para engordá-las; também cura febres causadas por dor de dente. Algumas pequenas frases – que nos lembram que um dos primeiros “reclames” do refrigerante mais vendido do mundo era “Coca-Cola... faz um bem!” – expõem a ironia: “Toma já um Melhoral / Porque é bom e não faz mal / Além disso é legal”, ou “Tome e fique confiante / Vai ficar muito elegante / Isto é melhor que um purgante” e “É um milagre da medicina / Que é o avanço da aspirina”. No plano sonoro, a composição lembra uma música de propaganda, reforçada no refrão e no título, por meio do verbo no modo imperativo.

Machado de Assis e António Variações perceberam a dupla falência do mundo em que viviam: ambos cresceram em países periféricos, que passavam ao largo da modernização tecnológica e que tardaram a ingressar nos modelos mais livres de sociedade; ao mesmo tempo, ambos olhavam com bastante desconfiança as supostas maravilhas que esses modelos de sociedade traziam: é assim tão festivo (plagiando as palavras de Sammliz, do Madame Saatan, no Estúdio Showlivre) o mundo que carrega consigo a depressão e o vazio das horas intermináveis de trabalho que não realiza, de diversões fúteis que alienam, de produtos de utilidade relativa, de propagandas que grudam nos ouvidos, da indústria farmacêutica que se aproveita de tudo isso?
Os leitores que se lembraram de que há comprimidos legais e ilegais e de que a canção de António Variações também alude a eles não estará equivocado: pode-se ir muito além na interpretação. Numa noite, revisitando uma Lisboa que eu já conhecia dos poemas de Fernando Pessoa, deixei meus companheiros de viagem a dormir e abri um bom vinho, que lá se pode comprar num supermercado a menos de dois euros. Tomei-o todo, cheio de saudades da melancolia de meu avô e do silêncio de meu pai, ouvindo rock em português de Portugal, que nunca foi tão brasileiro.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Sobre Cristo, o Madame Sataan, o heavy metal e a língua portuguesa

Alguém ainda há de escrever um tratado a respeito da repercussão e da importância do heavy metal no Brasil. O público de metal é dos mais fiéis, não falta a shows apesar do preço, organiza fãs-clubes; além disso, temos legítimos representantes do gênero no país. Para dizer o mínimo, contamos com Sepultura e Viper, bandas cujo sucesso se delineou, primeiramente, no exterior, para só depois ser definitivamente consolidado por aqui. É curioso: uma fita K7 de Theatre of Fate, do Viper, chegou a minhas mãos diretamente do Japão, quando eu era adolescente, por meio de uma amiga que tinha um amigo que morava lá. Era assim que as coisas aconteciam na época em que não havia internet.


Essas duas bandas não compõem as letras em Língua Portuguesa, daí a torcida de nariz que uma parte do público e da crítica lhes dá. A questão é delicada: bandas que cantam em inglês, num gênero que é estrangeiro, podem ser consideradas parte da cultura brasileira? Particularmente, acredito que sim, sobretudo se levarmos em consideração as contribuições marcantes que a música brasileira tem na obra do Sepultura, pelo menos nos trabalhos Chaos AD e Roots. Da mesma maneira, na gravação ao vivo do Maniacs in Japan, do Viper, presta-se homenagem aos brasileiros e a Tim Maia, com “Não quero dinheiro”. Não quero encerrar a questão neste texto – voltarei, no futuro, a essas duas bandas, que merecem análise à parte, sobretudo o Sepultura, afinal seu último trabalho dialoga longamente com a Divina Comédia de Dante Alighieri –, mas Luiz Tatit, professor universitário, estudioso da semiótica da (nossa) canção e também compositor afirma que “a música estrangeira, em graus diversos, é parte integrante da música brasileira”, afirmação em que ponho toda fé do mundo.

Como resposta a essa parcela do público que rejeita o metal brasileiro, tem cintilado o trabalho do Madame Sataan, banda da cena musical Belém do Pará, que compõe letras em português e que me foi apresentada pelo colega de Showlivre, e agora amigo, Sidney Filho. Acho que não é arriscado dizer que a temática primeira das letras de heavy metal são demônios, assombrações e maldições, numa espécie de versão musical dos filmes de terror norte-americanos. As letras, muitas vezes, contém versos soltos, expressando o estado de caos em que está imerso o eu que canta. O Madame Sataan dá uma cara de Brasil a esse universo: a cidade de Belém, incrustada na Amazônia, fez fecundar, no metal pesado das composições da banda, a cultura popular religiosa brasileira que ainda se faz viva na cidade – o Círio de Nazaré é sua manifestação mais conhecida, cantada pelo Madame em “Vela” – e que guarda a característica típica de fazer conviver o sagrado com o profano. Daí a recuperação do soneto “Buscando a Cristo”, de Gregório de Matos Guerra, em outra canção da banda, “Prometeu”.
Os leitores hão de se lembrar de que Gregório de Matos é nosso grande nome na manifestação das contradições barrocas de um século de conflitos, o dezessete. Em palavras bem simples, para facilitar: de um lado, manifestava-se nos homens o desejo pela carne, pelo desfrute material da vida; de outro, a devoção a Cristo e a tentativa de preservar, no mundo terreno, os valores espirituais difundidos pela Igreja Católica. No soneto citado pelo Madame Sataan, o eu-lírico descobre, diversas vezes, na imagem de Cristo na cruz, uma dualidade reconfortante: os braços estão abertos para receber o eu arrependido e estão cravados na madeira para não castigá-lo. Os olhos, cheios de sangue e de lágrimas, estão acordados para perdoá-lo, mas estão cobertos e carregados, para não castigá-lo. O texto é concluído com a idéia de que o eu quer ficar “unido, atado e firme” ao lado da cruz, sob a proteção de Cristo. Repare, leitor, que essas três palavras podem ser entendidas como o desejo de não oscilar mais entre a carne e o espírito, entre o desfrute do material e a abnegação espiritual. Impossível. Uma característica primordial da condição humana – que se manifesta em todas as festas populares religiosas – é exatamente experimentar, ao longo de toda a vida, essa nebulosa em que convivem o sagrado e o profano.
A parcela profana da canção do Madame está no título: Prometeu, na mitologia grega, foi o titã que roubou aos deuses o fogo que deu aos humanos a ânsia pelo saber. Na versão cristã, o desejo de conhecimento se manifesta no mito de Adão e Eva, provocados pela serpente demoníaca a comer do fruto proibido e perder a inocência. Diríamos, hoje, em nossa perspectiva que valoriza tudo que é ciência e racionalidade, que essa procura é o que faz de nós seres pensantes, é ela que nos move a alcançar o progresso científico e tecnológico, mas é preciso lembrar que mais de uma cultura julga que ela é a responsável por nossa desgraça – e é aí que entra a banda de Belém. Em “Prometeu”, somos todos “a criação já decaída / Liderando o ranking das ações mal resolvidas”. Numa odisséia de metal de mais de sete minutos, descreve-se sem linearidade – e em língua portuguesa – a condição dos humanos: desorientados, anjos de carne passeando em carros lotados de preces, desejando o que não conseguem viver, carregados de culpa, pedindo perdão ao Cristo cravado na cruz.
O soneto de Gregório de Matos, na canção do Madame, está subvertido: falta exatamente o trecho final em que o eu-lírico conclui sua prece desejando estar atado à cruz. Preserva-se, portanto, o estágio intermediário entre o sagrado e o profano. A sensação é de que falta a segurança que os ícones religiosos dão aos homens, falta o equilíbrio que a esperança na redenção pós-morte oferece aos que nela crêem. Digamos tudo: é a fé que está em xeque, principalmente se lembrarmos que Prometeu foi condenado a ficar acorrentado ao cume do monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia dilacerava-lhe o fígado que, para sua desgraça, se regenerava, eternizando-lhe o sofrimento: “Enquanto morre um nascem dois iguais” é a versão do Madame para a dor da humanidade, que ousa sempre. O apetite humano pela sabedoria e pelo controle da natureza, ao mesmo tempo que liberta e fascina, aprisiona e faz sofrer, porque nunca acaba.
O heavy metal é o gênero ideal para cantar essa condenação – sobretudo na voz de Sammliz, trombeta das mazelas humanas em que pulsa a vida da banda. Trata-se da incorporação definitiva do gênero mais pesado do rock à canção brasileira, capítulo mais recente da história do nosso metal: fugindo aos clichês fáceis dos demônios estilizados ianques, do “medo do escuro” pré-adolescente, das assombrações hollywoodianas – que funcionam bem em inglês, mas que soam, na maioria das vezes, como folclore cinematográfico-cômico aos ouvidos dos brasileiros –, o Madame Sataan arrepia os brasileiros com versos em português que descrevem nosso pior medo: a sensação de que, apesar de participarmos da modernidade e apostarmos na razão, há algo além do plano material, que vive nas crenças populares, nos acasos inexplicáveis, na desgraça e – poucas vezes – na maravilha da vida cotidiana. Daí a falta de linearidade das frases que, juntas, compõem um todo que sempre remete à mesma pergunta: como versejar a respeito do que não tem organização no plano concreto?
Aprendi com meu amigo Sidney Filho e com “Prometeu” a respeitar essa dúvida, que a sabedoria popular formulou há muito tempo. Lembremo-nos: no universo cristão, o demônio é o espírito da destruição e pai de toda mentira, aquele que nos envenena com o desejo de conhecimento e controle do mundo. Mas não nos esqueçamos de que, na canção do Madame Sataan, a cultura clássica aponta a dúvida como característica inerente à espécie humana: ela talvez seja a única forma de não nos rendermos como cordeiros aos supostos desígnios divinos.

Ao cantar, em língua portuguesa, a condição humana, sem se valer dos clichês do heavy metal estrangeiro, e dando a Cristo e ao demônio formas populares locais, o Madame Sataan assimila definitivamente o metal à canção brasileira, projetando-a, mais uma vez, para além dos limites geográficos da língua portuguesa.