quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Guilhermoso Wild Chicken: Severino, crítica e diversão

Na última edição do Thunderview, Thunderbird entrevistou Guilhermoso Wild Chicken. Quem assistir ao programa certamente terá uma impressão no mínimo curiosa deste que se intitula “O Frango Selvagem do Rock and Roll” – e talvez não o leve a sério, por causa das piadas (que o entrevistador do Showlivre não para de alimentar) e dos grasnados que emite rapidamente. Certamente, o som de Guilhermoso é feito para dançar e se divertir, com influências dos clássicos do rock das décadas de 50 e 60:





Quem já assistiu a uma apresentação do Guilhermoso ou ouviu a letra de “Severino”, entretanto, terá percebido que, na obra do Frango, nem tudo é festa e tiração de sarro: em muitos shows, ele é tomado de selvageria absurda e tira quase toda a roupa, numa performance que beira a profanação do próprio espetáculo; em “Severino”, um dos grandes temas da literatura brasileira, o retirante, ganha forma de rock com versos em português.

Não será um erro dizer que o rock nacional namora o que poderíamos chamar, plagiando o defunto-autor de Machado de Assis, de “pena da galhofa”. Em outras palavras: algumas de nossas bandas são extremamente irônicas e humorísticas nas letras. Lembremos, apenas a título de exemplo, do Ultraje a Rigor (leia texto a respeito da ironia na obra do Ultraje clicando aqui) e do Camisa de Vênus; muito da identidade e do brilho desses conjuntos está em dizer o contrário do que se quer dizer (é essa a definição de ironia), além de seus letristas serem autênticos piadistas em alguns momentos - ouça “Marylou”, do Ultraje, ou “Deus, me dê grana”, do Camisa:





Pode-se dizer que ambos, Roger e Marcelo Nova, são mestres da associação do riso com a crítica.

Não confundamos, entretanto, o humor ácido de Roger Moreira e Marcelo Nova com bandas como os Mamonas Assassinas – cuja esculhambação acaba por perder o sentido. Sem juízos de valor sobre os Mamonas (embora, a mim, particularmente, eles nunca tenham agradado), não parece um equívoco dizer que a postura crítica, acentuada pelas ironias, que marcam as canções do Camisa e do Ultraje, passa longe das obras dos Mamonas.

Pois bem: Guilhermoso está no limiar entre esses dois polos, o esculhambado e o crítico ácido. “Severino” é a versão brasileira do Johnny, do clássico “Johnny B. Goode”. Na canção de Chuck Berry, um jovem guitarrista da Louisiana sai de casa à cata de sucesso:





Na do Frango Selvagem, Severino vai “Descendo o São Francisco, lá no meio do sertão” e “Gastou sua sandália nem conhece avião”:





Trazendo para o rock o universo sertanejo, Guilhermoso dá um tiro certeiro: ele não deixa que a canção fique melancólica no ritmo ou na letra. Ela fica, ao contrário, divertida, já que a imagem da cultura brasileira, em comparação com o glamour norte-americano, sai sempre perdendo: “O jegue tá cansado já andou que nem camelo / Severino vai levando só tem osso falta pelo”. Não temos aqui o cowboy heróico nem seu cavalo fiel e inteligente dos faroestes ianques; temos, isso sim, um jegue cansado e um sertanejo em pele e osso. O leitor que está daí a torcer o nariz para o Frango Selvagem e para mim não se esqueça de que a tiração de sarro, antes de mais nada, põe em evidência o falseamento daquele glamour estrangeiro.

Em resumo, é possível dizer que, utilizando-se do rock, gênero norte-americano por excelência, e do tema do retirante brasileiro, Guilhermoso expõe o besteirol que nos é vendido pela indústria cultural dos Estados Unidos. Há ainda um outro detalhe: os nomes de que o Frango Selvagem é fã remetem às origens do rock, muito mais negras e populares do que qualquer outra coisa. O historiador Eric Hobsbawn, na sua História Social do Jazz não cansa de afirmar que, nas origens do rock e do jazz, as canções mais políticas não eram as que faziam protesto explícito, mas aquelas em que era retratado o cotidiano das populações americanas mais pobres.

Talvez a canção de Guilhermoso tenha importância exatamente por deixar de lado o protesto tão conhecido do público brasileiro (tome-se como exemplo o “Funeral de um lavrador”, em canção de Chico Buarque com versos de “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto), para mergulhar no cotidiano do sertanejo, conforme a sugestão de Hobsbawn, mas sempre com o toque de humor e ritmo animado, dançante: “Me contou sua história muita dor e cicatriz / Sua vida é um milagre só tá vivo por um triz” ou “Severino caminhando sol a sol pela caatinga / Rapadura muita fome e um gole dessa pinga”.

Nem por isso ficam de lado as imagens cruas que podem ser recolhidas na vasta literatura a respeito dos retirantes. “A sua esperança já perdeu quando criança / Vida estranha muito estranha, mas é essa sua dança”: eis aí versos em que se percebe com clareza a ideia da sina, do suposto destino inalterável do sertanejo – Fabiano, personagem de Vidas Secas, de Graciliano Ramos repete ao longo de todo o texto que sabe qual é “seu lugar”, que sabe que nasceu “para servir os outros”, sem que seu destino possa ser mudado. E é exatamente em momentos como esse que a canção de Guilhermoso não cai na pura esculhambação – ainda que esteja eivada de humor.

Os versos da última estrofe talvez sejam os mais críticos da canção: “E a gente vai tão de repente nem parece repentista / Na história tá escrito: Tiradentes foi dentista”. Uma interpretação possível é a de que o Severino que “vai e não olha pra trás” chegue tão abruptamente à cidade, que se veja alienado da cultura musical sertaneja, daí a alusão ao “repentista”, que não guarda nenhuma relação de sentido com “dentista”, palavra com que rima. Pode-se ver, nesse trecho, a mesma sensação de Macabéa, personagem retirante de Clarice Lispector em A hora da estrela, que conhecia trechos da história universal e brasileira por meio da rádio-relógio, mas que se esquecera das cantigas de roda do sertão.

Fabiano, Macabéa e o Severino do Guilhermoso são personagens da literatura e do rock do Brasil – todas elas não conseguem vislumbrar uma alternativa de futuro, nem ser agentes do próprio destino. Utilizando-se de elementos clássicos do rock das décadas de 50 e 60 para debater um tema considerado “sério” na literatura brasileira, o Frango Selvagem do Rock and Roll (brasileiro) comete uma profanação fundamental para rechaçar a sisudez conservadora dos nossos intelectuais: mostra que é possível fazer crítica bem-humorada, forrada de rock and roll.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Apontamentos para a história do rock brasileiro - Parte II - Los Porongas e a formação do público


Assistir ao show de lançamento do DVD dos Los Porongas no SESC Pompéia na última quinta-feira, dia 12 de fevereiro, foi uma revelação para o público que estava lá – embora talvez nem todas as pessoas tenham percebido a importância do evento de que faziam parte.

Não é a primeira vez que os acreanos aparecem aqui na Métrica (leia análise da canção “Nada Além” ou o comentário sobre show da banda na Virada Cultural no palco independente, em 2008). Já foi dito por aqui, por isso é desnecessário repetir, que Diogo Soares talvez seja o maior poeta da nova geração do rock brasileiro; do mesmo modo, é um pleonasmo afirmar que a banda, pela postura sonora livre da lógica das grandes gravadoras, aponta para o futuro da canção brasileira. Isto é: aponta para o Cruzeiro, poderíamos dizer - sempre lembrando que, na bandeira brasileira, a constelação do Cruzeiro do Sul está representada como se fosse observada por um observador hipotético, que não estaria na superfície da Terra.

Acertadamente, no documentário Música de Trabalho, de Daniel Dias (assista ao filme inteiro no You Tube clicando aqui), Lobão afirma que a canção independente é “a trilha sonora" deste tempo e que, no futuro, é nela que os historiadores buscarão a definição do início do século 21:




Arrisco dizer que, nesse estudo vindouro, talvez os Porongas figurem nos primeiros parágrafos, ou ganhem um capítulo todo para eles.

Trata-se do seguinte: quem assistir ao DVD encontrará a canção S.O.S, de 1981, do Grupo Capu, provavelmente desconhecido da maioria dos leitores paulistanos – e deste autor também, até a última quinta. Segundo Diogo, essa banda pode ser considerada a precursora do rock autoral no Acre. O som é rock puro, pesado, sem frescuras, de letra atuante, com um pé no imaginário psicodélico dos anos 70, com espaçonave que cai e impressiona o povo, e outro no Brasil do presente e do futuro, que não muda de jeito nenhum: inflação e dólar que seguem prejudicando o povo que “paga para nascer”, “vive por viver” e “vive de aluguel”. Em palavras simples: a pegada do som e a letra seguem atuais, talvez porque o Grupo Capu, há quase trinta anos, podia observar o Brasil por dentro e por fora - e já percebia que o país não mudaria tanto quanto se esperava.

Mais marcantes, entretanto, são os comentários do baterista Jorge Anzol no making off do DVD – extremamente emocionado com imagens dos Porongas tocando com o baterista do Grupo Capu, Hermógenes, no Festival Varadouro de 2008, a que o leitor pode assistir abaixo:




Talvez o próprio Anzol e seus parceiros de banda não saibam, mas aquela passagem de baquetas e a gravação de S.O.S. no DVD escrevem um capítulo na história da formação de um público inteligente do rock nacional.

Explicando: pagar o tributo para uma banda local – que talvez só não tenha feito sucesso na década de 80 devido à impossibilidade de ingressar no Eixo Rio-São Paulo de rock, porque não podia contar com a internet e todos os recursos que conhecemos hoje – é uma forma de criar tradição, de ensinar ao público que não interessam apenas os últimos sucessos radiofônico-descartáveis. Mais importante ainda: é uma forma de ensinar ao público de São Paulo essas lições.

Numa edição recente do Thunderview, Daniel Belleza afirmou que o público da capital é careta e não quer conhecer bandas novas - nem as do Acre:




Belleza está coberto de razão ao dizer isso. Prevalece nesta cidade a lógica de mercado e do consumo rápido, o que leva, segundo o mesmo Daniel Belleza, à ausência de festivais de música independente por aqui e até à omissão das grandes bandas, que deveriam abrir espaço para as pequenas.

E é aí também que os Porongas são grandes: em lugar de gravar no DVD uma canção com suposto “apelo de mercado”, de uma banda grande, o que poderia “potencializar as vendas”, resolvem os acreanos reverenciar os conterrâneos que, de certa forma, iniciaram o sonho do rock fora do eixo das grandes capitais; em lugar de render-se à lógica da estética vendida do mainstream paulistano, deixam claro no DVD que têm uma marca forte que trazem do Acre – a sua “contradição primeira”, a “urbanidade amazônica” – e que não vão despojar-se dela.

“O rock, antes de ser um som, é uma atitude, e acredito que o Acre seja rock n’ roll na sua essência”, afirma Diogo no DVD. Acreditemos no vocalista: na essência da postura e da sonoridade, os Los Porongas são combativos, porque não se rendem aos apelos fáceis para conquistar o público – preferem, ao contrário, formar o público mostrando a ele a pluralidade em detrimento da massificação de mercado; optam pela tradição e pela reverência aos mestres em vez do consumo rápido da arte de plástico das grandes gravadoras, que apresentam ao “mercado” uma novidade envelhecida por semana.

Aprendamos em São Paulo, portanto, como é que se forma público de rock – tentemos aprender a correr pelas ruas como se corre pelos rios, rumo ao Cruzeiro. Observado, evidentemente, pelos Los Porongas, que fazem parte de nosso tempo e de nosso país, mas que têm a capacidade de transportar-nos para fora do aqui e do agora, para que pensemos a respeito do Brasil, olhando-o, criticamente, por dentro e de fora.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A Cidade e o tempo

O lançamento do DVD dos Inocentes, cuja gravação já comentei, o aniversário de São Paulo e a regravação da canção "A Cidade não para" pelo Julia Car pediam um texto no Identidade Musical. Leia clicando aqui.