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sábado, 14 de fevereiro de 2009

Apontamentos para a história do rock brasileiro - Parte II - Los Porongas e a formação do público


Assistir ao show de lançamento do DVD dos Los Porongas no SESC Pompéia na última quinta-feira, dia 12 de fevereiro, foi uma revelação para o público que estava lá – embora talvez nem todas as pessoas tenham percebido a importância do evento de que faziam parte.

Não é a primeira vez que os acreanos aparecem aqui na Métrica (leia análise da canção “Nada Além” ou o comentário sobre show da banda na Virada Cultural no palco independente, em 2008). Já foi dito por aqui, por isso é desnecessário repetir, que Diogo Soares talvez seja o maior poeta da nova geração do rock brasileiro; do mesmo modo, é um pleonasmo afirmar que a banda, pela postura sonora livre da lógica das grandes gravadoras, aponta para o futuro da canção brasileira. Isto é: aponta para o Cruzeiro, poderíamos dizer - sempre lembrando que, na bandeira brasileira, a constelação do Cruzeiro do Sul está representada como se fosse observada por um observador hipotético, que não estaria na superfície da Terra.

Acertadamente, no documentário Música de Trabalho, de Daniel Dias (assista ao filme inteiro no You Tube clicando aqui), Lobão afirma que a canção independente é “a trilha sonora" deste tempo e que, no futuro, é nela que os historiadores buscarão a definição do início do século 21:




Arrisco dizer que, nesse estudo vindouro, talvez os Porongas figurem nos primeiros parágrafos, ou ganhem um capítulo todo para eles.

Trata-se do seguinte: quem assistir ao DVD encontrará a canção S.O.S, de 1981, do Grupo Capu, provavelmente desconhecido da maioria dos leitores paulistanos – e deste autor também, até a última quinta. Segundo Diogo, essa banda pode ser considerada a precursora do rock autoral no Acre. O som é rock puro, pesado, sem frescuras, de letra atuante, com um pé no imaginário psicodélico dos anos 70, com espaçonave que cai e impressiona o povo, e outro no Brasil do presente e do futuro, que não muda de jeito nenhum: inflação e dólar que seguem prejudicando o povo que “paga para nascer”, “vive por viver” e “vive de aluguel”. Em palavras simples: a pegada do som e a letra seguem atuais, talvez porque o Grupo Capu, há quase trinta anos, podia observar o Brasil por dentro e por fora - e já percebia que o país não mudaria tanto quanto se esperava.

Mais marcantes, entretanto, são os comentários do baterista Jorge Anzol no making off do DVD – extremamente emocionado com imagens dos Porongas tocando com o baterista do Grupo Capu, Hermógenes, no Festival Varadouro de 2008, a que o leitor pode assistir abaixo:




Talvez o próprio Anzol e seus parceiros de banda não saibam, mas aquela passagem de baquetas e a gravação de S.O.S. no DVD escrevem um capítulo na história da formação de um público inteligente do rock nacional.

Explicando: pagar o tributo para uma banda local – que talvez só não tenha feito sucesso na década de 80 devido à impossibilidade de ingressar no Eixo Rio-São Paulo de rock, porque não podia contar com a internet e todos os recursos que conhecemos hoje – é uma forma de criar tradição, de ensinar ao público que não interessam apenas os últimos sucessos radiofônico-descartáveis. Mais importante ainda: é uma forma de ensinar ao público de São Paulo essas lições.

Numa edição recente do Thunderview, Daniel Belleza afirmou que o público da capital é careta e não quer conhecer bandas novas - nem as do Acre:




Belleza está coberto de razão ao dizer isso. Prevalece nesta cidade a lógica de mercado e do consumo rápido, o que leva, segundo o mesmo Daniel Belleza, à ausência de festivais de música independente por aqui e até à omissão das grandes bandas, que deveriam abrir espaço para as pequenas.

E é aí também que os Porongas são grandes: em lugar de gravar no DVD uma canção com suposto “apelo de mercado”, de uma banda grande, o que poderia “potencializar as vendas”, resolvem os acreanos reverenciar os conterrâneos que, de certa forma, iniciaram o sonho do rock fora do eixo das grandes capitais; em lugar de render-se à lógica da estética vendida do mainstream paulistano, deixam claro no DVD que têm uma marca forte que trazem do Acre – a sua “contradição primeira”, a “urbanidade amazônica” – e que não vão despojar-se dela.

“O rock, antes de ser um som, é uma atitude, e acredito que o Acre seja rock n’ roll na sua essência”, afirma Diogo no DVD. Acreditemos no vocalista: na essência da postura e da sonoridade, os Los Porongas são combativos, porque não se rendem aos apelos fáceis para conquistar o público – preferem, ao contrário, formar o público mostrando a ele a pluralidade em detrimento da massificação de mercado; optam pela tradição e pela reverência aos mestres em vez do consumo rápido da arte de plástico das grandes gravadoras, que apresentam ao “mercado” uma novidade envelhecida por semana.

Aprendamos em São Paulo, portanto, como é que se forma público de rock – tentemos aprender a correr pelas ruas como se corre pelos rios, rumo ao Cruzeiro. Observado, evidentemente, pelos Los Porongas, que fazem parte de nosso tempo e de nosso país, mas que têm a capacidade de transportar-nos para fora do aqui e do agora, para que pensemos a respeito do Brasil, olhando-o, criticamente, por dentro e de fora.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Mutantes, retrospectiva e perspectivas

Escolhi o Thunderview com Sérgio Dias Baptista, guitarrista dos Mutantes, como o melhor programa do Showlivre feito em 2008. Não o fiz com pouca dor no coração: tive de deixar de lado algumas edições queridas do Estúdio Showlivre, outras do Mão na Massa e a cobertura de alguns eventos. Acontece que os Mutantes são, como já escrevi em uma coluna anterior, responsáveis pelo processo de assimilação do rock à canção brasileira. E a entrevista de Thunderbird com Sérgio Dias, além de confirmar essa hipótese, deixa algumas lições para todos os que pensam a cena musical no Brasil hoje e participam dela de alguma maneira. Daí a minha escolha: além de ensinar muito a respeito da história do rock brasileiro, a entrevista ajuda a analisar a cena atual e a traçar algumas hipóteses para o futuro próximo.

Os Mutantes ainda são, nas palavras de Thunder, “a principal referência do rock nacional”. Muito disso se deve, primeiramente, ao ineditismo de fazer rock com elementos de música brasileira, sobretudo nos primeiros trabalhos, sob a influência tropicalista. “Dois mil e um”, de Tom Zé e Rita Lee, (no link em versão recente, dos últimos shows que os Mutantes fizeram), por exemplo, é canção marcante, sobretudo pela associação da sonoridade caipira com o rock. Além disso, no mesmo disco, de 1969, uma versão de “Tintarella di luna” – já vertida para a língua portuguesa por Celly Campello, considerada a primeira roqueira do Brasil – marca outro motivo pelo qual se pode medir a relevância mutante: é dialogando com o passado, sem repeti-lo cegamente, que se cria tradição de rock no universo da canção nacional. A versão dos Mutantes reconstrói o “Banho de Lua” de Celly Campello, conferindo-lhe elementos vigorosos e dando-lhe peso suficiente para ecoar, também, sonoridades que vinham de fora – Beatles, Stones e outros monstros sagrados e consagrados. Em suma, Rita, Arnaldo e Sérgio não repetiam o que se fazia no exterior, mas usavam as influências estrangeiras e nacionais para criar rock brasileiro – procedimento bem ao gosto tropicalista, inspirado, em boa medida, na Antropofagia oswaldiana. Para Sérgio Dias, “tudo o que está acontecendo hoje fora do Brasil é o que aconteceu aqui antigamente”. De fato, o Brasil talvez seja um dos primeiros países a incorporar o rock como gênero musical, metamorfoseando-o (“mutanteando-o”, se quiséssemos um neologismo a contento) e aclimatando-o aos elementos locais, o que tem ocorrido cada vez com mais freqüência no exterior.

Mas os Mutantes são ainda mais do que tudo isso. Já na década de 60, eles ensinavam que rock and roll se faz com a adequada calibragem entre talento musical e recursos técnicos. Sérgio Dias, Arnaldo Baptista e Rita Lee são talentos que dispensam comentários, sempre acompanhados por músicos, arranjadores e técnicos de som de primeira linha – Rogério Duprat, Liminha, Dinho Leme, Pena Schmidt, cometendo o pecado de deixar de lado muita gente boa que passou pela banda; além de todos eles, havia ainda um outro mutante, de bastidores, Cláudio César Baptista, que preparava os instrumentos artesanalmente, com uma qualidade de dar inveja a qualquer megaempresa norte-americana. Quem pesquisar a história da banda descobrirá que, nas muitas formações que tiveram, os Mutantes sempre se caracterizaram pela busca da excelência técnica.
É dessa constatação que vem a fala de Sérgio Dias de que, hoje, os Mutantes são muito melhores, porque contam com uma aparelhagem que responde às necessidades dos músicos. “Antigamente, a gente não tinha o poder de fogo que tem hoje, então a gente pode tocar tudo como era; a concepção inteira está no palco”: as restrições técnicas das décadas de 60 e 70 resultaram em improvisações nos espetáculos ao vivo para cobrir os limites tecnológicos – como acontecia, também, com os Beatles, por exemplo; hoje, os limites quase inexistem, e os Mutantes podem mostrar todo o talento que sempre tiveram. Não nos esqueçamos, ainda, de que a banda foi também uma espécie de usina de talentos, cujas experiências orientaram, de certa forma, a história do rock nacional, não só na carreira solo de Rita Lee, mas também com as produções de Liminha e Pena Schmidt.
Mas talvez a fala mais curiosa da entrevista seja mesmo a de que o sucesso atual dos Mutantes no exterior se deve à atualidade daquilo que eles faziam há quarenta anos – afirmação que impressiona e até assusta, principalmente se nos lembrarmos de que os brasileiros padecem de um complexo eterno de inferioridade, sobretudo no que diz respeito à cultura, ainda mais aquela que se produz em língua portuguesa. Resistimos a acreditar que o que os Mutantes faziam no Brasil no final da década de 60 é extremamente atual em termos globais; resistimos a nos sentir vanguarda artística em alguma coisa – até naquilo que fazemos de melhor, que é a nossa canção.
Pois bem, está na hora de nos acostumarmos: somos bons, talvez os melhores do mundo, em composição de canções, inclusive nas de rock. E o sucesso dos Mutantes no exterior é apenas um indicador de que isso é verdade. Digo mais: a entrevista com Sérgio Dias Baptista nos ajuda a entender o aquecimento da cena atual da música independente no Brasil. Na picada aberta pelos Mutantes, alargada por inúmeras bandas, os independentes de hoje trabalham com a diversidade de elementos brasileiros – para comprovar, basta assistir às coberturas que a equipe do Showlivre fez dos festivais em 2008. O rock é apenas um gênero dos muitos que a canção brasileira abraça livremente, transformando-o e aprimorando-o.
Tudo isso ocorre à moda da periferia do capitalismo, é claro. O fato de as canções terem letras em língua portuguesa é uma explicação possível para o retardamento da ampla recepção dos Mutantes no exterior – mas não é mais um entrave. Segundo Sérgio Dias, nos shows recentes dos Mutantes, o público gringo enrolava a língua para tentar cantar em português. Começa a acabar, pois, a idéia de que cantar em idioma estrangeiro é a única forma de conquistar o mercado internacional. Talvez eu seja muito otimista, mas este pode ser o momento de inverter a chave do imperialismo cultural norte-americano e europeu: invadamos o mundo com a sonoridade brasileira!

Ao mesmo tempo, hoje se pode criar e divulgar canções com bastante qualidade técnica graças às inovações tecnológicas. Também começa a dar adeus – se é que já não deu definitivamente – o tempo em que, para fazer música com alguma qualidade, era preciso muito dinheiro. A cena independente deve muito de seu aquecimento e de sua qualidade àquelas inovações. Fica, então, para o futuro próximo, a expectativa de que as bandas se utilizem dessas facilidades para fazer que o nosso rock seja alçado à altura que merece: a de parte fundamental e integrante do universo da canção brasileira. Enfim: há espaço para experimentações e inovações de toda sorte; para letras em português ou em outros idiomas; há meios de criação e de divulgação dos trabalhos. Resta aproveitar o momento e enriquecer a história da canção no Brasil – e no mundo.Sérgio Dias afirmou muito humildemente, logo no início da entrevista, que os Mutantes não são donos de nada. Discordo: ao menos em boa parte, é deles a responsabilidade pelas veredas abertas à música brasileira no mercado mundial. A incorporação do rock à canção brasileira; o diálogo com o passado, de modo a criar no Brasil uma tradição ligada a esse gênero; o talento musical para fazer tudo isso, atado à qualidade técnica; as inovações e as experiências que serviram às produções futuras; a criação de letras em língua portuguesa, superando o mito de que elas não obterão sucesso no mercado mundial – todas essas são lições que podem nortear o futuro próximo da nossa canção.