domingo, 1 de março de 2009

Porcas Borboletas e a nossa tradição irônica

No texto anterior, a análise de uma canção do Guilhermoso Wild Chicken levou-nos a investigar alguns aspectos de uma tradição bastante forte do rock brasileiro: a irônica, a dos roqueiros nacionais "bocas do inferno". Essa tradição - talvez iniciada pelos Mutantes, exímios ironistas - carece de mais pesquisas, pois não é improvável que a criação de letras engraçadas e críticas ao mesmo tempo remonte a artistas mais antigos, até de tempos em que não havia rock por aqui.

Há, na cena independente brasileira, várias bandas que se destacam nessa arte. Na sexta passada, esteve em São Paulo, tocando na Outs, a banda Porcas Borboletas, cuja "Lembrancinha" pode ser ouvida no Myspace dos caras. Abaixo, a canção vai ao vivo, mas o som não está cem por cento. A letra é curta, simples e hilária - o refrão é uma crítica ácida ao consumismo: "Ah, se eu pudesse escolher, eu preferia um Nike":



Para reconhecer a ironia - sempre levando em consideração que ser irônico é dizer exatamente o contrário do que se quer dizer -, é necessário investigar as estrofes. "Mamãe, te amo / Mas podia ter te amado / muito mais naquele dia / em que pela porta entraste / trazendo nas mãos / uma grata lembrancinha": do ponto de vista da linguagem, os elementos são flagrantes - o tom de carta de família, subitamente interrompido no segundo verso, em que o ouvinte descobre que a relação afetiva está condicionada ao presente recebido; a flexão da forma verbal "entraste" na segunda pessoa, que confere ao texto uma solenidade artificial, também reforçada pela entonação de voz; a expressão toda clichê "e nos lábios, os dizeres"; finalmente, o diminutivo carinhoso do título, a "lembrancinha", antecipada, agora, pelo ainda mais artificial adjetivo "grata", assume sentido extremamente irônico, já que o presente oferecido pelos pais ao eu que canta será aceito, mas desvalorizado no refrão.

Na segunda estrofe, alcança-se, mais uma vez, a ironia, por meio da fala da mãe, orgulhosa do amor que dedica ao filho, medido pelo presente que lhe oferece: "Toma, meu filho, é pra você. / E isto prova que mamãe e papai / te amamos muito / muito muito / mas agora é tarde / e eu vou dormir". Versos curtos para dizer muita coisa: a prova de amor ao filho é meramente material; não é à toa que, no refrão, a singela criança rejeita o presente, afinal, se a medida do amor está num produto, para sentir-se amado é mais que fundamental que ele seja caro, ou que seja aquele que traz mais status - no caso, a marca mais famosa. Coisas do mundo do capital.

Os leitores que notaram que a mãe vai dormir logo depois de presentear o filho já terão sacado que há aí, também, uma crítica ao trabalho excessivo, que toma aos pais tempo de ficar com os filhos, a quem só resta serem amados por meio de presentes.

A força da canção dos Porcas Borboletas, entretanto, vai além dessa crítica: há, ainda, a citação a versos de "Chavão abre porta grande", de Itamar Assumpção - o que abre novas portas interpretativas. À primeira vista, em "Lembrancinha", a banda Porcas Borboletas criou uma canção bem-humorada, irônica; depois, sem perder a piada, acabou fazendo crítica forte à lógica irracional do capitalismo, em que a medida do amor está no preço dos produtos-mercadoria; finalmente, ao citar um dos participantes da Vanguarda Paulistana - uma das gêneses inspiradoras da cena independente atual -, o conjunto se insere na tradição da nossa música experimental, livre das amarras da indústria fonográfica, tocando adiante a obra de mestres como o próprio Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé (com quem a banda se apresentou recentemente) e o Grupo Rumo, do compositor e professor Luiz Tatit, cuja obra a respeito da canção brasileira não canso de citar.

De fato, é verdade que chavões - isto é, clichês - abrem portas (interpretativas) grandes: os termos "entraste", "nos lábios, os dizeres" e o próprio título "lembrancinha" são lugares-comuns que nos encaminham para as críticas e ironias da canção.

Ainda mais do que isso: os versos "Não adianta vir arreganhando os dentes para mim / Porque sei que isso não é um sorriso", de Itamar Assumpção, podem aludir ao sorriso dos pais (que presenteiam) dirigido ao filho presenteado, retomando a ideia da relação afetiva orientada pelo universo material. O sorriso não é sorriso: é obrigação, ameaça, contrato assinado de dever cumprido.

Em "Penso logo existo, penso que existo / Penso que penso, penso que penso" podem ter o mesmo efeito, escancarando a alienação dos que estão sujeitos às relações afetivas esmagadas pelo dinheiro.

Finalmente, "Quem não vive / tem medo da morte" e "De repente o amor de sempre / Não era mais suficiente" desvelam, agora a sério, sem as ironias, o desmoronamento da relação dos pais com o filho já analisada nos versos anteriores. Do ponto de vista sonoro, nas estrofes, uma levada de música de sala de jantar, música-ambiente, indica sarcasmo rasgado dirigido à família tradicional. No refrão, o arranjo é pura alegria. De um lado, a letra escancara a falência das relações; de outro, no plano sonoro, permanece o bom mocismo decadente e encobertador da família artificialmente feliz. Ironia pura, do ponto de vista cancional.

Se ouvirmos o disco inteiro dos caras, descobriremos a ironia aos métodos emburrecedores de aprendizagem de inglês em "Sunday"; a análise da vida urbana em "Por um triz" e "Protegimento"; a experimentação dos limites sonoros e significativos da palavra em "Vernissage", "Chamada" e "Terminal Central"; o escancaramento da pessoa-produto em "Pessoa Linda" (essa merece uma análise só para ela), em que o escancarar de dentes que parece sorriso é retomado; e "Eu", texto de Arnaldo Antunes publicado no livro as coisas, de 1992, musicado pelo Porcas Borboletas de forma sensível, que nos faz entender o quão pequenos somos no mundo. Um disco inteiro bom, destinado a tornar-se clássico, daqueles que se ouve durante meses, talvez até mais tempo, com a ordem das canções na cabeça; daqueles que acabam marcando e demarcando um determinado momento da própria vida de quem ouve.

Retomando a tradição da Vanguarda Paulistana; trabalhando com as palavras sob a influência de poetas de grande quilate (não é à toa que, nas semanas que virão, o letrista Danislau Também participará de recitais poéticos com Chacal, poeta da emblemática geração de 70 da poesia marginal), mas já alcançando-os e até superando-os; usando o riso para fazer crítica, sem cair na esculhambação e no pastelão; mergulhando em toda ordem de experimentações sonoras; preocupando-se sempre com a crítica e com a formação do público; e, para terminar, fazendo um espetáculo que impressiona pela performance, os Porcas Borboletas enriquecem a cena idependente e acotovelam a canção brasileira desinteligente, alienada, sentimentalóide, aprisionada por sonhos de Nikes, forrada de humor que não faz crítica.

Trata-se de borboletas pela sonoridade poética; trata-se de porcas pela sujeira que trazem à tona em suas críticas - e quem é que precisa de mais do que isso?