Há, na cena independente brasileira, várias bandas que se destacam nessa arte. Na sexta passada, esteve em São Paulo, tocando na Outs, a banda Porcas Borboletas, cuja "Lembrancinha" pode ser ouvida no Myspace dos caras. Abaixo, a canção vai ao vivo, mas o som não está cem por cento. A letra é curta, simples e hilária - o refrão é uma crítica ácida ao consumismo: "Ah, se eu pudesse escolher, eu preferia um Nike":
Para reconhecer a ironia - sempre levando em consideração que ser irônico é dizer exatamente o contrário do que se quer dizer -, é necessário investigar as estrofes. "Mamãe, te amo / Mas podia ter te amado / muito mais naquele dia / em que pela porta entraste / trazendo nas mãos / uma grata lembrancinha": do ponto de vista da linguagem, os elementos são flagrantes - o tom de carta de família, subitamente interrompido no segundo verso, em que o ouvinte descobre que a relação afetiva está condicionada ao presente recebido; a flexão da forma verbal "entraste" na segunda pessoa, que confere ao texto uma solenidade artificial, também reforçada pela entonação de voz; a expressão toda clichê "e nos lábios, os dizeres"; finalmente, o diminutivo carinhoso do título, a "lembrancinha", antecipada, agora, pelo ainda mais artificial adjetivo "grata", assume sentido extremamente irônico, já que o presente oferecido pelos pais ao eu que canta será aceito, mas desvalorizado no refrão.
Na segunda estrofe, alcança-se, mais uma vez, a ironia, por meio da fala da mãe, orgulhosa do amor que dedica ao filho, medido pelo presente que lhe oferece: "Toma, meu filho, é pra você. / E isto prova que mamãe e papai / te amamos muito / muito muito / mas agora é tarde / e eu vou dormir". Versos curtos para dizer muita coisa: a prova de amor ao filho é meramente material; não é à toa que, no refrão, a singela criança rejeita o presente, afinal, se a medida do amor está num produto, para sentir-se amado é mais que fundamental que ele seja caro, ou que seja aquele que traz mais status - no caso, a marca mais famosa. Coisas do mundo do capital.
Os leitores que notaram que a mãe vai dormir logo depois de presentear o filho já terão sacado que há aí, também, uma crítica ao trabalho excessivo, que toma aos pais tempo de ficar com os filhos, a quem só resta serem amados por meio de presentes.
A força da canção dos Porcas Borboletas, entretanto, vai além dessa crítica: há, ainda, a citação a versos de "Chavão abre porta grande", de Itamar Assumpção - o que abre novas portas interpretativas. À primeira vista, em "Lembrancinha", a banda Porcas Borboletas criou uma canção bem-humorada, irônica; depois, sem perder a piada, acabou fazendo crítica forte à lógica irracional do capitalismo, em que a medida do amor está no preço dos produtos-mercadoria; finalmente, ao citar um dos participantes da Vanguarda Paulistana - uma das gêneses inspiradoras da cena independente atual -, o conjunto se insere na tradição da nossa música experimental, livre das amarras da indústria fonográfica, tocando adiante a obra de mestres como o próprio Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé (com quem a banda se apresentou recentemente) e o Grupo Rumo, do compositor e professor Luiz Tatit, cuja obra a respeito da canção brasileira não canso de citar.
De fato, é verdade que chavões - isto é, clichês - abrem portas (interpretativas) grandes: os termos "entraste", "nos lábios, os dizeres" e o próprio título "lembrancinha" são lugares-comuns que nos encaminham para as críticas e ironias da canção.
Ainda mais do que isso: os versos "Não adianta vir arreganhando os dentes para mim / Porque sei que isso não é um sorriso", de Itamar Assumpção, podem aludir ao sorriso dos pais (que presenteiam) dirigido ao filho presenteado, retomando a ideia da relação afetiva orientada pelo universo material. O sorriso não é sorriso: é obrigação, ameaça, contrato assinado de dever cumprido.
Em "Penso logo existo, penso que existo / Penso que penso, penso que penso" podem ter o mesmo efeito, escancarando a alienação dos que estão sujeitos às relações afetivas esmagadas pelo dinheiro.
Finalmente, "Quem não vive / tem medo da morte" e "De repente o amor de sempre / Não era mais suficiente" desvelam, agora a sério, sem as ironias, o desmoronamento da relação dos pais com o filho já analisada nos versos anteriores. Do ponto de vista sonoro, nas estrofes, uma levada de música de sala de jantar, música-ambiente, indica sarcasmo rasgado dirigido à família tradicional. No refrão, o arranjo é pura alegria. De um lado, a letra escancara a falência das relações; de outro, no plano sonoro, permanece o bom mocismo decadente e encobertador da família artificialmente feliz. Ironia pura, do ponto de vista cancional.
Se ouvirmos o disco inteiro dos caras, descobriremos a ironia aos métodos emburrecedores de aprendizagem de inglês em "Sunday"; a análise da vida urbana em "Por um triz" e "Protegimento"; a experimentação dos limites sonoros e significativos da palavra em "Vernissage", "Chamada" e "Terminal Central"; o escancaramento da pessoa-produto em "Pessoa Linda" (essa merece uma análise só para ela), em que o escancarar de dentes que parece sorriso é retomado; e "Eu", texto de Arnaldo Antunes publicado no livro as coisas, de 1992, musicado pelo Porcas Borboletas de forma sensível, que nos faz entender o quão pequenos somos no mundo. Um disco inteiro bom, destinado a tornar-se clássico, daqueles que se ouve durante meses, talvez até mais tempo, com a ordem das canções na cabeça; daqueles que acabam marcando e demarcando um determinado momento da própria vida de quem ouve.
Retomando a tradição da Vanguarda Paulistana; trabalhando com as palavras sob a influência de poetas de grande quilate (não é à toa que, nas semanas que virão, o letrista Danislau Também participará de recitais poéticos com Chacal, poeta da emblemática geração de 70 da poesia marginal), mas já alcançando-os e até superando-os; usando o riso para fazer crítica, sem cair na esculhambação e no pastelão; mergulhando em toda ordem de experimentações sonoras; preocupando-se sempre com a crítica e com a formação do público; e, para terminar, fazendo um espetáculo que impressiona pela performance, os Porcas Borboletas enriquecem a cena idependente e acotovelam a canção brasileira desinteligente, alienada, sentimentalóide, aprisionada por sonhos de Nikes, forrada de humor que não faz crítica.Trata-se de borboletas pela sonoridade poética; trata-se de porcas pela sujeira que trazem à tona em suas críticas - e quem é que precisa de mais do que isso?