quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O Tempo marca os Móveis Coloniais de Acaju (Parte II: o Amor e o enfrentamento)

"Aluga-se-vende" era uma canção amarga: nela, vimos que o eu que canta lamentava as interferências da vida afetiva na vida material e vice-versa. O resultado final era a tentativa malograda de botar para fora as lembranças, último resquício da relação amorosa que havia acabado. De certa forma, a lembrança é uma forma de perpetuação do passado sobre o presente: quem só vive de lembranças não tem tempo para experimentar o presente ou criar expectativas para o futuro. A sensação de que a vida se perdeu em nostalgia talvez seja das piores. Mas não é com ela que nos deparamos na canção "O Tempo", dos mesmos Móveis Coloniais de Acaju:

 

O desafio ao Tempo

Em "O Tempo", os arranjos são alegres e coloridos, os versos são de um eu completamente apaixonado. Pulemos, por instante, a primeira estrofe. "Parece que até jantei / Com toda a família e sei / Que seu avô gosta de discutir / E sua avó gosta de ouvir / Você dizer que vai fazer": uma análise rápida diria que esse eu fascinado com o ser amado é diferente do de "Aluga-se-vende". É o contrário: a concepção amorosa que está por trás das duas canções é a mesma. Nos versos acima, percebe-se que, quando ama, o eu se deixa tomar pelo outro: não basta conhecê-lo, amá-lo, é preciso também jantar com seus familiares, porque estes são parte do ser amado - e o eu quer possuí-lo todo. Talvez por isso a relação amorosa cujo final observamos em "Aluga-se-vende" não tenha dado certo: lá, o eu e o outro não compunham um só, não eram da mesma família, já não partilhavam mais nada.

Voltando aos primeiros versos, em que está proposto o desafio da canção: "A gente se deu tão bem / Que o Tempo sentiu inveja / Ele ficou zangado e decidiu / Que era melhor ser mais veloz / E passar rápido pra mim". Alguns detalhes precisam ser observados: primeiramente, notemos que a canção começa com o termo "a gente", em que estão contidos o eu e o ser amado por ele, o que confirma a hipótese anterior: o eu só está amorosamente completo se estiver em plena conjunção com o outro, a ponto de eles serem um terceiro.

Além disso, é preciso perceber que a palavra Tempo, com a letra maiúscula, está personificada - podemos dizer que ele é o grande rival do eu que canta. A canção ganha, assim, dimensão trágica: o eu, a quem o Destino presenteou com o amor, é um perseguido pelo Tempo, que lhe tem inveja. O eu está investido, portanto, de uma dimensão heróica: resistirá ao tempo por causa do amor. E vencerá, como veremos - talvez seja esse o encanto da canção.

Não adiantemos as conclusões e deixemos, de lado, o refrão. Nos versos "Espero o dia que vem / Pra ver se te vejo e faço /O Tempo esperar como esperei / A eternidade se passar / Nos meus segundos sem você": aqui, o eu desafia o Tempo o tempo todo (a repetição é proposital), atrasando-o. Quando está sem o ser amado, o eu mede a passagem do tempo em segundos. Embora, desse modo, a sensação de correr do tempo seja mais aflitiva, a percepção de superação do tempo é mais constante. Notemos: para o eu apaixonado, cada segundo superado, por mais que seja eterno, o aproxima do dia que virá, em que estará ao lado do ser amado.

Vencendo o Tempo, esse teimoso que não para

A melhor estrofe da canção é a seguinte, "Agora eu já nem sei / Se hoje foi anteontem / Me perdi lembrando o seu olhar / O meu futuro é esperar / Pelo presente de fazer", que, ao final, engata no refrão. Iniciada pelo advérbio "agora", a estrofe contém a sensação de estar ao lado do eu amado: o tempo para, fica suspenso, a ponto de o eu não saber diferenciar o hoje do anteontem, a ponto de ficar perdido no olhar do ser amado. No futuro, a perspectiva de agir por meio do amor, retomando o desafio ao tempo, fazendo-o engatinhar. O refrão ganha, nesse momento, uma variação: "O Tempo engatinhar / do jeito que eu sempre quis / distante é devagar / perto passa bem / depressa assim / pra mim". Ora, está aí a explicação do desafio do eu, cujo universo subjetivo ou afetivo, fortalecido pelo amor, é capaz de desafiar o tempo cronológico, cronometrado. Em "Aluga-se-vende", esse universo estava enfraquecido pela falta de amor, por isso a dimensão material ganhava espaço: os objetos que deveriam ser divididos na separação, a força do dinheiro, a briga pelo espaço da casa que deixava de ser lugar de partilha para ser campo de batalha.

"Se o Tempo se abrir, talvez / Entenda a razão de ser / De não querer sentar pra discutir / De fazer birra toda vez / Que peço um tempo pra me ouvir". Agora, o Tempo é tratado como um ser teimoso, birrento, imaturo - o Tempo é como os adolescentes, que só querem avançar incessantemente, sem parar para conversar, para avaliar o passado. O Tempo não tem paciência para aprender com a passagem do tempo. Abrir-se talvez signifique rever-se, reavaliar-se, mudar, mas o Tempo é incapaz de fazê-lo: como ele é sempre igual, com o mesmo ritmo objetivo, é um grande conservador, incapaz de experimentar o diferente; embora esteja em constante renovação, o Tempo é sempre o mesmo, por isso não tem nem pode ter a competência de amar: quem ama, ao menos na concepção do eu que canta, tem de estar pronto para o diferente, para o outro que vem para formar um terceiro, síntese da entrega amorosa.

Pausa à moda de Machado de Assis, para discutir o Tempo e o Amor

O leitor já terá terá percebido que a lógica que orienta o sentido das letras - essa em que o estado de espírito do eu perde espaço quando está enfraquecido ou ganha força quando está redivivo pelo amor - é também a que dá a cor dos arranjos musicais. Lá pelos três minutos e vinte, os Móveis retêm o tempo e o andamento da canção, e o eu que canta reflete, ato subjetivo por natureza, que também ignora o tempo cronológico: "Eu que nunca discuti o amor / Não vejo como me render / Ah será que o Tempo tem tempo pra amar / Ou só me quer tão só". Trata-se da dúvida que nos segue a todos: devemos nos render à passagem inexorável do Tempo? Será que o Tempo já experimentou o Amor, para atropelá-lo de forma tão brutal? Sugiro que o eu que canta deve ter descoberto que, na perspectiva do Tempo, tudo deve ser deixado para trás. Está nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, quando Natureza ou Pandora, que representa o fatalismo das leis naturais, diz ao defunto-autor:

Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. (Fragmento do capítulo VII, "O Delírio") 

O eu que canta passa longe do egoísmo: sua canção começou com a expressão "a gente", que aponta dois amantes integrados num terceiro, a relação. O Tempo é o inimigo desse casal porque representa a finitude, a fatalidade; o eu que canta toma para si, portanto, a responsabilidade de desafiar essa lei natural - que só pode ter sido escrita por alguém muito egoísta, como a Natureza, que quer ver todos sós - ou alguém que nunca pôde experimentar o Amor.

Daí a conclusão: "E então se tudo passa em branco eu vou pesar / A cor da minha angústia e no olhar / Saber que o Tempo vai ter que esperar". Se a passagem do Tempo é inevitável, se a angústia do eu - experimentada em "Aluga-se-vende" - foi tão marcante, por que render-se ao Tempo? Ele vai ter de esperar.

A charada: o refrão e o Amor

No refrão, observa-se a submissão do tempo ao eu: "O tempo engatinhar / do jeito que eu sempre quis / se não for devagar / que ao menos seja eterno assim". O tempo engatinhando, de quatro, é evidentemente a imagem de uma suposta vitória do eu, mas não deixemos de lado a imagem misteriosa da esfinge, figura mitológica que desafia heróis trágicos - como o eu da canção. Domar o tempo, fazê-lo engatinhar: eis aí a peripécia do eu, em nome do amor; é preciso descobrir a charada que o Tempo propõe ao eu. E uma outra, que o próprio eu propõe ao Tempo, vencendo-o.

Os dois últimos versos talvez contenham a proposição do mistério a solucionar: mesmo que o tempo não passe devagar - trecho que, por si só, já aponta para a impossibilidade de vencê-lo completamente -, "que ao menos seja eterno assim". Assim como? temos de perguntar.

Uma resposta possível é a de que o tempo do amor é eterno, porque amar é experimentar a sensação de infinitude. Os casais mais apaixonados planejam o futuro, os nomes dos filhos e a casa em que envelhecerão juntos, porque, para quem ama, o tempo é infinito - assim como o amor que experimentam. Desse modo, no refrão, o tempo eterno é a sensação subjetiva de tempo experimentada pelo eu que canta. Todos sabemos que o tempo do relógio não corresponde ao nosso tempo interno.

Cabe lembrar, também, que a sensação de passagem do tempo está intimamente relacionada com o espaço. O amor do refrão é infinito porque é experimentado no aqui e no agora de cada execução da canção, eternizando-se, espalhando-se no espaço e no tempo. Mais do que isso: a passagem do tempo é eterna repetição; na canção, o refrão é repetição. E é exatamente ele o ponto alto da canção "O Tempo", em que a platéia dança com os Móveis e os aranjos crescem como se encarnassem a sensação amorosa. Assim, experimentamos o Amor no exato momento da audição da canção e retornamos a ele por meio do refrão, esquecendo-nos de que o tempo passa.

É essa a vitória definitiva do eu que canta: cada vez que escutamos a canção "O Tempo", dos Móveis Coloniais de Acaju, o amor experimentado se atualiza, se presentifica - isto é, não passa, superando, vencendo, definitivamente, o seu grande adversário: o tempo, agora com letra minúscula, porque ficou pequeno frente ao Amor - que é uma forma de perpetuação do presente sobre o futuro.

O Tempo marca os Móveis Coloniais de Acaju (Parte I: a fratura afetiva e a chave que não funciona mais)




Lembro-me exatamente do momento em que virei fã dos Móveis Coloniais de Acaju: foi no instante exato da audição de "Aluga-se-vende", cuja letra e sonoridade me impressionaram demais:

"Aluga-se-vende", desde o título, remete ao final das relações - e a dimensão material, leia-se financeira, que esse evento traumático acaba ganhando. Trata-se de tema, de certa forma, novo. Que o leitor não me entenda mal: términos de namoros e casamentos talvez sejam o assunto mais antigo das canções; o fato de as pessoas tentarem compensar essa fratura afetiva com o suposto remédio (que é, também e principalmente, veneno) do dinheiro e das brigas judiciais é que talvez seja novidade.

Lá está, no arranjo soturno inicial, toda o trauma: faltam, nos primeiros versos, os instrumentos de sopro que costumam dar cor e alegria às canções dos Móveis. Só depois é que eles entram, mas brevemente, quase que como trombetas de guerra que minguam aos poucos, antes dos versos "Alto lá / Não volte aqui, não / Quem te fez fingir viver / Uma vida feliz? / Tá, eu sei / Meras tolices / Nos fizeram sem querer / Precisar de um juiz". Quem já se separou ao menos uma vez dispensa as interpretações: se é verdade que o amor precisa de tempo para florescer, será obvio que não morre de uma hora para outra. Nos versos acima, leem-se as tentativas de reatar, de fingir-se feliz apesar da angústia, de machucar o outro com as palavras - tudo que pode acabar no tribunal. "Alto lá" é frase que se pronuncia em momentos de invasão de espaço - a relação amorosa (que, ao menos em sua concepção mais cotidiana, deveria contemplar um espaço comum entre os casados) está em crise: o eu vê a entrada do outro como intrusão, como ataque.

É na estrofe seguinte que a cisão afetiva acaba contaminando a vida concreta por meio da partilha dos bens, do espaço físico: "Mas essas suas / Chaves já não / Servem mais / Meu quarto e sala já tem / Um corretor / E se você quiser / Terá de alugar, meu amor". As chaves estão aí, evidentemente, não só no sentido literal, mas também no figurado: ter as chaves significa ter a posse (vide a linguagem dos financiamentos de imóveis); a chave também é um elemento essencial para o equilíbrio de um sistema ou de uma relação. Entendamos, assim, que o outro a quem o eu se dirige perdeu o segredo (palavra que também pode estar investida, aqui, de dois sentidos) para entrar no espaço em que mora o eu. Perdeu a posse que tinha dele, em resumo, tudo isso por meio da imagem das chaves que já não servem mais.

Perdida a posse do quarto e da sala (que podem ser entendidos como a vida íntima do eu, como veremos), resta ao outro, se quiser, alugar o amor do eu. Nos versos, a separação da forma verbal "alugar" e do termo "meu amor" por uma vírgula perde o valor se ouvirmos a pronúncia das palavras na canção. E a interpretação ganha corpo: o que era um vocativo carinhoso ("meu amor") torna-se o complemento do verbo "alugar", uma operação comercial. É tudo que restou do amor, metamorfoseado em negociação de bens. No plano vocal, as vogais são estendidas, ondualm, encarnando o lamento e choro do eu que canta.

Mais curioso é perceber que chave também pode ser o mecanismo que, em certos instrumentos de sopro, ao ser acionado, diferencia as notas. Sem o amor, perdem-se as melodias, unidades de sentido na canção. Um linguista diria que para reconhecer uma nota musical precisamos de outra. O reconhecimento vem exatamente pela diferença. E é exatamente essa incapacidade de discernimento pela diferença que transforma separações em ocorrências tão traumáticas: com as suscetibilidades atingidas, com as inseguranças à tona, perde-se a noção do que é provocação ou mero pedido de ajuda; uma frase carinhosa ou neutra soa irônica, não porque o seja, mas porque os sentidos do outro, comprometidos pela dor, só percebem ironia. O eu diz medo, o outro diz vida feliz: "Alto lá / Não fale assim, não / Nem no medo vão nos ver /Ter a vida feliz!". Ambos sabem que é hora de ir - mas é difícil deixar para trás o que foi, um dia, a vida feliz, em uníssono.

Perdida agora a razão, ganha espaço a estupidez: "Nossa estupidez não nos / Deixou ver quanto gris". Gris é a cor intermediária entre o branco e preto; nas artes gráficas, é a cor de tons apagados, cinzentos devido a problemas com a tintagem, ou, ainda, a cor do negativo fotográfico com contraste insuficiente. De todo modo, parece estar clara a ideia da falha, da impossibilidade de percepção das diferenças, imperceptíveis aos olhos estúpidos, cegos pela fratura afetiva. As ofensas perdem o sentido, as chaves não funcionam mais, o quarto e a sala já têm fiador: "E se você quiser / Saiba que eu tenho já, meu amor". Mais uma vez, a pronúncia inverte o sentido da escrita: o eu já tem seu próprio amor - talvez o amor próprio necessário para vencer a separação inevitável. O vocativo que se referia ao outro (que perdeu, literal e metaforicamente, espaço) agora refere-se ao próprio eu.

Os versos seguintes reafirmam essa ideia: "Nem mais sei quem é você / Que está aqui de mudanças. / Só, vou lhe deixar aí! / Solidão e lembranças...". Novamente, a letra está repleta de sentidos em que se confundem os universos subjetivo e objetivo: as mudanças - de personalidade e de casa - tornaram desconhecido o eu que foi amado um dia. "Só" pode significar "solitário" ou "apenas". É o abandono quase definitivo.

Protegido da dor à força das circunstâncias, o eu ganha vitalidade nos arranjos seguintes, por meio dos instrumentos de sopro, que fazem que a canção ganhe cor, como se sinalizassem renovação: "Vê se vem buscar o que / restou aqui de lembranças / Pois já é hora de pôr / recordações para fora". As lembranças são os últimos despojos da relação que não deu certo, são os bens (ou males) derradeiros que precisam ser postos para fora: aos cinco minutos e doze, a linha de baixo simula o bater solitário e mudo do coração, que, a seguir, parece tentar exorcizar as lembranças. Em vão: elas se prolongam por meio do arranjo melancólico, que encerra a canção.

A sabedoria popular dirá que "O Tempo" resolve tudo: é o que veremos no próximo texto, com o detalhe de que o eu, renovado por um outro amor, depois de beneficiar-se das capacidades curativas do tempo, lutará contra o relógio.