Lembro-me exatamente do momento
em que virei fã dos Móveis
Coloniais de Acaju: foi no instante exato da audição de
"Aluga-se-vende", cuja letra e sonoridade me impressionaram demais:
"Aluga-se-vende", desde
o título, remete ao final das relações - e a dimensão material, leia-se
financeira, que esse evento traumático acaba ganhando. Trata-se de tema, de
certa forma, novo. Que o leitor não me entenda mal: términos de namoros e
casamentos talvez sejam o assunto mais antigo das canções; o fato de as pessoas
tentarem compensar essa fratura afetiva com o suposto remédio (que é, também e
principalmente, veneno) do dinheiro e das brigas judiciais é que talvez seja
novidade.
Lá está, no arranjo soturno
inicial, toda o trauma: faltam, nos primeiros versos, os instrumentos de sopro
que costumam dar cor e alegria às canções dos Móveis. Só depois é que eles
entram, mas brevemente, quase que como trombetas de guerra que minguam aos
poucos, antes dos versos "Alto lá / Não volte aqui, não / Quem te fez
fingir viver / Uma vida feliz? / Tá, eu sei / Meras tolices / Nos fizeram sem
querer / Precisar de um juiz". Quem já se separou ao menos uma vez
dispensa as interpretações: se é verdade que o amor precisa de tempo para
florescer, será obvio que não morre de uma hora para outra. Nos versos acima,
leem-se as tentativas de reatar, de fingir-se feliz apesar da angústia, de
machucar o outro com as palavras - tudo que pode acabar no tribunal. "Alto
lá" é frase que se pronuncia em momentos de invasão de espaço - a relação
amorosa (que, ao menos em sua concepção mais cotidiana, deveria contemplar um
espaço comum entre os casados) está em crise: o eu vê a entrada do outro como
intrusão, como ataque.
É na estrofe seguinte que a cisão
afetiva acaba contaminando a vida concreta por meio da partilha dos bens, do
espaço físico: "Mas essas suas / Chaves já não / Servem mais / Meu quarto
e sala já tem / Um corretor / E se você quiser / Terá de alugar, meu
amor". As chaves estão aí, evidentemente, não só no sentido literal, mas
também no figurado: ter as chaves significa ter a posse (vide a linguagem dos
financiamentos de imóveis); a chave também é um elemento essencial para o
equilíbrio de um sistema ou de uma relação. Entendamos, assim, que o outro a
quem o eu se dirige perdeu o segredo (palavra que também pode estar investida,
aqui, de dois sentidos) para entrar no espaço em que mora o eu. Perdeu a posse
que tinha dele, em resumo, tudo isso por meio da imagem das chaves que já não
servem mais.
Perdida a posse do quarto e da
sala (que podem ser entendidos como a vida íntima do eu, como veremos), resta
ao outro, se quiser, alugar o amor do eu. Nos versos, a separação da forma
verbal "alugar" e do termo "meu amor" por uma vírgula perde
o valor se ouvirmos a pronúncia das palavras na canção. E a interpretação ganha
corpo: o que era um vocativo carinhoso ("meu amor") torna-se o
complemento do verbo "alugar", uma operação comercial. É tudo que
restou do amor, metamorfoseado em negociação de bens. No plano vocal, as vogais
são estendidas, ondualm, encarnando o lamento e choro do eu que canta.
Mais curioso é perceber que chave
também pode ser o mecanismo que, em certos instrumentos de sopro, ao ser
acionado, diferencia as notas. Sem o amor, perdem-se as melodias, unidades de
sentido na canção. Um linguista diria que para reconhecer uma nota musical
precisamos de outra. O reconhecimento vem exatamente pela diferença. E é
exatamente essa incapacidade de discernimento pela diferença que transforma
separações em ocorrências tão traumáticas: com as suscetibilidades atingidas,
com as inseguranças à tona, perde-se a noção do que é provocação ou mero pedido
de ajuda; uma frase carinhosa ou neutra soa irônica, não porque o seja, mas
porque os sentidos do outro, comprometidos pela dor, só percebem ironia. O eu
diz medo, o outro diz vida feliz: "Alto lá / Não fale assim, não / Nem no
medo vão nos ver /Ter a vida feliz!". Ambos sabem que é hora de ir - mas é
difícil deixar para trás o que foi, um dia, a vida feliz, em uníssono.
Perdida agora a razão, ganha
espaço a estupidez: "Nossa estupidez não nos / Deixou ver quanto
gris". Gris é a cor intermediária entre o branco e preto; nas artes
gráficas, é a cor de tons apagados, cinzentos devido a problemas com a
tintagem, ou, ainda, a cor do negativo fotográfico com contraste insuficiente.
De todo modo, parece estar clara a ideia da falha, da impossibilidade de
percepção das diferenças, imperceptíveis aos olhos estúpidos, cegos pela
fratura afetiva. As ofensas perdem o sentido, as chaves não funcionam mais, o
quarto e a sala já têm fiador: "E se você quiser / Saiba que eu tenho já,
meu amor". Mais uma vez, a pronúncia inverte o sentido da escrita: o eu já
tem seu próprio amor - talvez o amor próprio necessário para vencer a separação
inevitável. O vocativo que se referia ao outro (que perdeu, literal e
metaforicamente, espaço) agora refere-se ao próprio eu.
Os versos seguintes reafirmam
essa ideia: "Nem mais sei quem é você / Que está aqui de mudanças. / Só,
vou lhe deixar aí! / Solidão e lembranças...". Novamente, a letra está
repleta de sentidos em que se confundem os universos subjetivo e objetivo: as
mudanças - de personalidade e de casa - tornaram desconhecido o eu que foi
amado um dia. "Só" pode significar "solitário" ou "apenas".
É o abandono quase definitivo.
Protegido da dor à força das
circunstâncias, o eu ganha vitalidade nos arranjos seguintes, por meio dos
instrumentos de sopro, que fazem que a canção ganhe cor, como se sinalizassem
renovação: "Vê se vem buscar o que / restou aqui de lembranças / Pois já é
hora de pôr / recordações para fora". As lembranças são os últimos
despojos da relação que não deu certo, são os bens (ou males) derradeiros que
precisam ser postos para fora: aos cinco minutos e doze, a linha de baixo
simula o bater solitário e mudo do coração, que, a seguir, parece tentar
exorcizar as lembranças. Em vão: elas se prolongam por meio do arranjo
melancólico, que encerra a canção.
A sabedoria popular dirá que "O Tempo"
resolve tudo: é o que veremos no próximo texto, com o detalhe de que o eu,
renovado por um outro amor, depois de beneficiar-se das capacidades curativas
do tempo, lutará contra o relógio.
Um comentário:
Adorei as duas partes! Parabéns!
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