segunda-feira, 13 de abril de 2009

Dilei: viagem dialogada à roda de si mesmo e do Brasil

A primeira audição de Olhar o mundo com os pés, do Dilei, é suficiente para perceber o tema marcante da banda: o poeta-cancionista-andarilho, que sai da terra-natal à cata de novas experiências, de aventuras, de outros horizontes. É o que está rolando com os caras neste exato momento, em turnê por terras de Chile e Argentina.

É difícil encontrar uma canção ou um verso em que o tema da viagem não apareça. Apenas para exemplificar, em "Conta-Gotas", ouve-se o seguinte: "Aperta o passo, quanto mais a gente anda / Mais vai enxergar, / Não me importa em ser assim, / Um andarilho pobre e infeliz". Curioso perceber que, no universo das canções do Dilei, o andarilho não está sozinho, ao contrário do que poderíamos imaginar. Para ele, é fundamental um interlocutor com quem possa partilhar as impressões da viagem. Para o eu que canta, o caminho trilhado já é, por si só, meio de aprendizagem, que será sempre partilhada com alguém, sejam amigos ou entes queridos, presentes ou não.

Levando a hipótese ao extremo: talvez a origem da banda e de suas canções esteja na intenção de dividir com o ouvinte as experiências da viagem. Seríamos, portanto, interlocutores, "companheiros de jornada" do eu que canta em Olhar o mundo com os pés.

O eu que canta se vê, entretanto, como um andarilho "pobre e infeliz". Por quê? O senso comum a respeito das viagens nos diz que elas são motivo de alegria: quem viaja, de certa forma, foge à realidade e encontra a completude. É contrário do que acontece aqui: o eu vaga aleatoriamente porque está em dúvida, em aflição. A viagem, na obra do Dilei, não é um meio de "curtir a vida" inconsequentemente; a viagem é, sim, forma de busca de respostas.

É flagrante, primeiramente, que o eu sai à cata de soluções para problemas sociais que o provocam; trata-se de problemas que estão fora dele, claro está, mas que lhe ferem insistentemente os sentidos. É o que ocorre em "Geração": "Eu já sei onde isso vai dar, / Meu pessimismo é real / E nossas leis foram feitas / Pra quem tem grana pra pagar / Uma nova alienação / Disfarçada de consciência / Discursos inflamados, / Braços cruzados, papo pelo ar".

Por outro lado, o eu mergulha em si mesmo, na melancolia do "Fim de Tarde" ("Que bom seria / Se a vida fosse um pôr-do-sol na praia") e nas maravilhas da infância, em "4 meses e 1/2" ("A infância é como um livro relido / Na memória de quem sonha / Em todos os recreios, brincadeiras, / Sorrisos e soluços, / Há de haver uma criança contente / Em nossas recordações"). Aliás, é em canções como essas que se faz perceber a característica sonora mais marcante do Dilei: a riqueza dos arranjos, com pífano, bandolim, violoncelo, samples. Assista ao vídeo de "Fim de Tarde" - e perceba como o violoncelo remete diretamente ao cair do sol, na praia:




Todo esse universo é marcado pela imagem do poeta-cancionista-andarilho, daí a repetição de imagens como a do tênis gasto e a do jeans rasgado devido à caminhada. Essa imagem lembra bastante a do poeta romântico de terceira geração, à Castro Alves: embora mergulhado em si, o poeta se imbui da missão de levar a consciência aos leitores. Neste caso, melhor seria dizer "ouvintes companheiros de jornada".

Mas a semelhança do Dilei com os românticos está apenas na superfície - da mesma forma que é superficial analisar a obra dos caras apenas pela temática da viagem, que é marcante, mas não é tudo. Os elementos descritos acima são todos peças de um quebra-cabeças que vou tentar ordenar.

Ora, um disco cujo título é Olhar o mundo com os pés remete diretamente a um eu que tem os pés no chão, bem distante das fugas e devaneios românticos. Há canções com ricos momentos de lirismo, é claro; mas as aflições concretas do eu que canta se sobrepõem à temática fácil da "curtição da vida", da inconsequência adolescente, da viagem como fuga ao mundo - temas que poderiam emergir facilmente. Não é o caso. O que vemos em canções, como a já citada "Geração", ou ainda "Teu Jeito", "Peça pra Sonhar Antes de Dormir" e "Contradições" é um eu sensível, dilacerado pelos problemas sociais que o circundam - e que insiste em não se alienar. Em palavras bem simples: é impossível curtir a viagem se o mundo externo ao eu é cheio de injustiças.

"Contradições" é, de todas, a canção que mais me agrada. O eu põe definitivamente os pés no chão e escancara as contradições inerentes à vida, perguntando "Quem foi que te falou de algo bom sem lado ruim?" - sempre dirigindo-se ao ouvinte, parceiro de viagem que agora é alvo das vociferações, que exigem: "Senhoras, senhores, me aceitem como sou / Senhoras, senhores, não me perdoem pelo que sou". É o brado por meio do qual todos os conflitos do eu vêm à tona - ele deseja autenticidade, já vimos que ele rejeita a falsa consciência das gerações jovens.

Na sequência, surgem versos que talvez sintetizem a obra do Dilei: "Fingir não ser você, / Só te faz ser alguém pior / Adotar pra si uma postura inconsequente / Que te faz tão só". Juntando as peças:

Primeiro: a viagem do eu que canta é, antes, uma viagem interna, à roda de si mesmo, das próprias contradições, das próprias sensações e impressões do mundo - em suma, uma viagem à cata da própria identidade. Vem daí a rejeição, nos dois primeiros versos acima, à alienação e aos estereótipos. E vem daí, também, a vontade de viajar, agora concretamente, no espaço - trata-se de uma forma de conhecer os próprios limites.

Segundo: no mergulho em si mesmo, o eu se percebe sempre provocado pelas impressões externas, sobretudo pelas contradições sociais com que se deparou ao longo da viagem. É impossível, para ele, adotar uma "postura inconsequente", isto é, uma postura egoísta, preocupada apenas consigo mesma. E é extamente por isso que o eu que canta em Olhar o mundo com os pés está sempre em diálogo com o ouvinte - o contrário da postura inconsequente é dividir com outros as impressões da viagem. E se possível, sensibilizá-los quanto a questões sociais.

Terceiro: a origem da riqueza dos arranjos pode estar não só na multiplicidade dos lugares visitados pelo eu que canta, mas também nas experiências, impressões e culturas que ele vai coletando a cada parada. É o que faz do Dilei uma banda extremamente brasileira.

O Dilei extravia, portanto, o tema da viagem e da curtição fácil e alienada para os recônditos das contradições pessoais e sociais: Olhar o mundo com os pés é, a um só tempo, obra de desfrute musical pela riqueza dos arranjos; de desfrute poético, pelo lirismo dos versos; de sensibilização social do público, pela preocupação com o mundo e pelos pés no chão.

3 comentários:

José Luiz de Campos Castejón Branco disse...

Boa noite, Rogério! Queria te dizer que sou muito amigo do baixista desta banda (Guilherme), realmente fazem um belo trabalho!
Bacana o seu texto! A gente se fala a qualquer hora, abração. josé luiz

José Luiz de Campos Castejón Branco disse...

Ah, já enviei para ele, o endereço do seu blog com seus comentários sobre a banda. ABS. J. Luiz

Rogério Duarte disse...

Rapaz! As coincidências deste mundo!

Abração!