sábado, 8 de junho de 2013

Daniel Groove e a cidade sem horizonte



No primeiro plano, da primeira a última cena, o clipe de Cadê Você, dirigido por Eduardo Escariz e Vivi Rodrigues, põe em evidência Daniel Groove, especialmente em sua dimensão como artista, o rosto muitas vezes sisudo, que a ambiência da canção pede, já que versa sobre a falta do outro; mas se investigarmos um pouco mais, perceberemos que o clipe transcende a dimensão de espetáculo e mergulha mesmo no universo mais íntimo do sujeito poético Daniel Groove e do sujeito comum Daniel, integrando-os num só e transcendendo-os para muito além do que pode imaginar o espectador.

Os primeiros segundos do clipe já acenam para a ideia de que está por se constituir, diante de nossos olhos, uma personagem. Daniel monta um cenário, do qual fazem parte gravuras diversas e, especialmente, a moldura de espelho a que falta espelho, que foi utilizada em ensaio fotográfico da época do Projeto Mais Massa. Recado dado, depois do fade out: o que vem a seguir é ficção, carregada de promoção da banda e de seu trabalho – esta é a vocação inicial do vídeo-clipe, desde seus primórdios, com os Beatles – e da consolidação de um ícone – o próprio Daniel Groove, personagem da Augusta, o cearense enorme e barbudo que conhece os músicos, o público, os donos das casas noturnas, os garçons do botequim, os intelectuais e os jornalistas. Ele veste a camisa, empunha o violão e canta – Daniel é todo sua arte no vídeo, da mesma forma que é todo sua vida nas canções que compõe.

O vídeo pode ser entendido, portanto, como desdobramento dessa promoção, como se intentasse inscrever Daniel em São Paulo, para além da Rua Augusta, mas especialmente no centro da cidade. Mas me parece que ainda é pouco: aos primeiros acordes da canção, Daniel Groove, já erigido em personagem, observa atentamente o céu. (Quem é que olha o céu em São Paulo?) Arrisco dizer que onde falta horizonte, recorre-se ao céu como ponto de fuga. Assim, a cena inicial aponta o encontro do Daniel Groove personagem com o Daniel Groove empírico, pessoa, meu amigo – aquele que, apesar de instalado num espaço sem horizonte, intenta alcançar espaço na galeria dos grandes compositores brasileiros. E consegue.

Mas não poderia ser diferente a sensação de solidão, que permeia todo o clipe. No show de lançamento de O Segundo Depois do Silêncio, dos Los Porongas no Centro Cultural São Paulo, Diogo Soares afirmou que ir a São Paulo viver de música era loucura. Suponho mesmo que seja, sobretudo devido à sensação de solidão ou de isolamento que observei diversos artistas experimentarem na cidade. É preciso respeitar o poder que ela tem de oprimir, mas é necessário não acovardar-se diante dela, sob o perigo de ser atropelado por um Mercedez: a lógica cruel do mercado – coração da cidade de São Paulo – aprecia destruir as vidas daqueles que acreditam que o amanhã pode ser diferente do hoje.

Mas Daniel Groove é que atropela a cidade, por assim dizer. Primeiro, amanhece olhando o céu, na falta do horizonte, lembrando-se das conquistas e das tragédias pessoais, mas seguindo adiante – daí a ideia constante de movimento no clipe. Daniel transita o tempo todo na cidade do trânsito, circula pelas artérias da pressa, do trabalho, da busca cega por sobrevivência e dinheiro. Mas ironiza tudo isso, quando se deita no viaduto sobre o congestionado corredor Leste-Oeste da cidade – isto é, enquanto corre o fluxo do mercado, Daniel pára e observa o céu, espécie de mantra visual que parece alertar, inspirado em Carlos Drummond de Andrade, que “O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muitos, vamos de mãos dadas”. Bastam, para Daniel, as separações inevitáveis e indesejadas que a vida impõe: daí a cena em que surgem os amigos e parceiros Saulo Duarte e João Eduardo. O Daniel personagem integra-se ao Daniel empírico e real quando ambos se apercebem que a canção, embora integre, transcende a lógica da cidade, que não pára. Por isso ele pára no meio da cidade, ou pára a cidade, quando canta, em performance inesquecível para quem já assistiu aos shows do Sonso.

Assim, toda a ambiência de ruas vazias e amplas do clipe – o Minhocão sem carros nem pessoas – não dá apenas a dimensão da experiência solitária da cidade, mas também amplifica o alcance dessa solidão em nossos íntimos. São Paulo tem quinze milhões de pessoas, e a maioria delas se sente solitária. Pra lidar com isso, uns frequentam terapia, outros botequim; tem gente que trabalha das seis da manhã à meia-noite, tem gente que foge pra longe. Daniel Groove senta no olho do furacão e transforma as experiências em canções – e o clipe em que, além de Daniel, a grande protagonista é São Paulo só poderia ter como fio condutor uma canção sobre a falta do outro.

Lá pelos três minutos e meio, observa-se em branco-e-preto uma sequência de Daniéis todos fictícios, versões caricaturais daquele outro, solitário. Não suponhamos que haja necessariamente um Daniel primordial ou verdadeiro, porque talvez não exista isso em ninguém (somos todos, um pouco mais ou um pouco menos, personagens de nós mesmos), mas imaginemos o Daniel consigo próprio, solitário; é difícil imaginá-lo sem espetáculo, mesmo nas situações corriqueiras, como torcedor de futebol ou leitor contumaz de livros-cabeça. A concepção visual dos diretores, agora, acaba por ironizar a própria dimensão do espetáculo em si e por si, que pode cair na artificialidade pura. Certamente não é o que ocorre com O Sonso, especialmente nas apresentações ao vivo, cuja potência está rigorosamente concentrada na autenticidade de Daniel quando sobe ao palco: concluídas as caricaturas, a imagem recupera as cores, a vida, e Daniel volta ao figurino conhecido e ao violão em punho, cantando a plenos pulmões. O clipe conclui-se, assim, com a integração do Daniel do espetáculo – no palco e nas entrevistas de imprensa – e do Daniel da intimidade – nos churrascos do Cambuci Roots.

Nos últimos acordes, a canção conclui-se com o céu ao fundo, a luz delineada por uma árvore feia – Drummond se a visse diria que é feia, mas é realmente uma árvore, que deixou em segundo plano a especulação dos grandes guindastes e que furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio da cidade.  As canções de Daniel Groove pontuam ao espectador que é por meio da arte que se constitui o sumo autêntico da vida – mesmo numa cidade sem horizontes.

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