terça-feira, 11 de junho de 2013

O direito (e o dever) da pesquisa estética: uma hipótese

Avaliando o movimento modernista de 22, Mário de Andrade afirma que o legado da Semana de Arte Moderna repousa em três princípios fundamentais. O primeiro deles me interessa precisamente aqui, porque diz respeito diretamente às relações entre a canção brasileira e a literatura: o direito permanente à pesquisa estética. Grosso modo, Mário de Andrade acreditava que um pressuposto fundamental para a criação artística, de forma geral, era a pesquisa nessa área.

A inanição intelectual em que vivemos mergulhados, na maioria das vezes, impede que percebamos a clareza e a atualidade desse legado mariodeandradiano. É simples: a canção popular brasileira já pode ser considerada um dos maiores resultados da produção artística brasileira. Sérgio Buarque de Holanda diria que, com nossa canção, enriquecemos "a humanidade com aspectos novos e imprevistos". Hoje já não devemos, por exemplo, quase nada à canção norte-americana, ao contrário: se é pra usar os termos da economia, arrisco dizer que o Brasil já é mais credor do que devedor se considerarmos a qualidade dessa produção.

Dizer que a música e a cultura brasileira estão em decadência só pode ser resultado de ignorância ou de má fé. A indústria cultural fonográfica está longe de ter melhorado os produtos que oferece ao grande público, mas um mercado paralelo de canção brasileira, chamado de independente ou underground, só tem crescido e é dele que advêm as melhores soluções para a nossa canção do ponto de vista estético. Aqui é que o pensamento de Mário de Andrade se faz atual: que soluções foram essas? É precisamente o direito a essa pesquisa que é preciso reivindicar, porque somente a investigação de obras como, por exemplo, a de Itamar Assumpção (só pra citar um compositor pouco ouvido e, assim, dar a medida da tibiez do exercício desse nosso direito) é que permitirá entender o papel grande que o Brasil cumpre no sistema internacional das artes.

Mário de Andrade fazia aquela avaliação em 1942 - mas o direito à pesquisa estética não foi plenamente adquirido até hoje. Nos poucos espaços em que se debate a canção popular, na esmagadora maioria das vezes, prefere-se divulgar uma nota informativa ou um furo jornalístico a investigar as próprias obras. Pior: discute-se mais o mercado da canção do que a própria canção. Depois do texto "A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução", de Walter Benjamin, não dá mais pra discutir uma coisa sem a outra, é claro. Mas faltam pesquisas em cujo núcleo esteja a canção, em que se verifique em que medida os meios em que ela é divulgada lhe interferem na forma e vice-versa. Honrosas exceções são os trabalhos de Luiz Tatit e José Miguel Wisnik.

O que desalenta ainda mais é o fato de muitos músicos e outros artistas abrirem mão da pesquisa estética, restringindo-se às expectativas de mercado. Em outras palavras, sobra a muitos artistas o misancene de artistas - os trejeitos, os chiliques, os siricoticos -, mas lhes falta o mergulho necessário na tradição de nossa canção, que já se agiganta. Apropriar-se da tradição acumulada, reconstituir e reescrever, na própria obra em composição, a história e o traçado da canção brasileira, pra aprofundar ou pra superar, em movimento dialético, esse cabedal que já temos: minha hipótese é a de que são esses alguns dos nortes que poderiam orientar a composição das canções de modo a fazê-la escapar cada vez mais aos enlatados da grande indústria.

Nos próximos textos, devo testar a hipótese acima a partir da análise breve de algumas obras recentes da canção popular brasileira. O ideal seria testar as hipóteses com a contribuição dos leitores, na caixa de comentários. Na medida do possível, os textos serão curtos como este, de modo a tentar angariar o maior número de leitores possíveis - afinal, minha intenção é fazer deste blog, tanto quanto me for possível, exatamente um espaço de exercício do direito à pesquisa estética.           

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