Quem já assistiu a uma apresentação do Guilhermoso ou ouviu a letra de “Severino”, entretanto, terá percebido que, na obra do Frango, nem tudo é festa e tiração de sarro: em muitos shows, ele é tomado de selvageria absurda e tira quase toda a roupa, numa performance que beira a profanação do próprio espetáculo; em “Severino”, um dos grandes temas da literatura brasileira, o retirante, ganha forma de rock com versos em português.
Não será um erro dizer que o rock nacional namora o que poderíamos chamar, plagiando o defunto-autor de Machado de Assis, de “pena da galhofa”. Em outras palavras: algumas de nossas bandas são extremamente irônicas e humorísticas nas letras. Lembremos, apenas a título de exemplo, do Ultraje a Rigor (leia texto a respeito da ironia na obra do Ultraje clicando aqui) e do Camisa de Vênus; muito da identidade e do brilho desses conjuntos está em dizer o contrário do que se quer dizer (é essa a definição de ironia), além de seus letristas serem autênticos piadistas em alguns momentos - ouça “Marylou”, do Ultraje, ou “Deus, me dê grana”, do Camisa:
Pode-se dizer que ambos, Roger e Marcelo Nova, são mestres da associação do riso com a crítica.
Não confundamos, entretanto, o humor ácido de Roger Moreira e Marcelo Nova com bandas como os Mamonas Assassinas – cuja esculhambação acaba por perder o sentido. Sem juízos de valor sobre os Mamonas (embora, a mim, particularmente, eles nunca tenham agradado), não parece um equívoco dizer que a postura crítica, acentuada pelas ironias, que marcam as canções do Camisa e do Ultraje, passa longe das obras dos Mamonas.
Pois bem: Guilhermoso está no limiar entre esses dois polos, o esculhambado e o crítico ácido. “Severino” é a versão brasileira do Johnny, do clássico “Johnny B. Goode”. Na canção de Chuck Berry, um jovem guitarrista da Louisiana sai de casa à cata de sucesso:
Na do Frango Selvagem, Severino vai “Descendo o São Francisco, lá no meio do sertão” e “Gastou sua sandália nem conhece avião”:
Trazendo para o rock o universo sertanejo, Guilhermoso dá um tiro certeiro: ele não deixa que a canção fique melancólica no ritmo ou na letra. Ela fica, ao contrário, divertida, já que a imagem da cultura brasileira, em comparação com o glamour norte-americano, sai sempre perdendo: “O jegue tá cansado já andou que nem camelo / Severino vai levando só tem osso falta pelo”. Não temos aqui o cowboy heróico nem seu cavalo fiel e inteligente dos faroestes ianques; temos, isso sim, um jegue cansado e um sertanejo em pele e osso. O leitor que está daí a torcer o nariz para o Frango Selvagem e para mim não se esqueça de que a tiração de sarro, antes de mais nada, põe em evidência o falseamento daquele glamour estrangeiro.
Em resumo, é possível dizer que, utilizando-se do rock, gênero norte-americano por excelência, e do tema do retirante brasileiro, Guilhermoso expõe o besteirol que nos é vendido pela indústria cultural dos Estados Unidos. Há ainda um outro detalhe: os nomes de que o Frango Selvagem é fã remetem às origens do rock, muito mais negras e populares do que qualquer outra coisa. O historiador Eric Hobsbawn, na sua História Social do Jazz não cansa de afirmar que, nas origens do rock e do jazz, as canções mais políticas não eram as que faziam protesto explícito, mas aquelas em que era retratado o cotidiano das populações americanas mais pobres.
Talvez a canção de Guilhermoso tenha importância exatamente por deixar de lado o protesto tão conhecido do público brasileiro (tome-se como exemplo o “Funeral de um lavrador”, em canção de Chico Buarque com versos de “Morte e vida severina”, de João Cabral de Melo Neto), para mergulhar no cotidiano do sertanejo, conforme a sugestão de Hobsbawn, mas sempre com o toque de humor e ritmo animado, dançante: “Me contou sua história muita dor e cicatriz / Sua vida é um milagre só tá vivo por um triz” ou “Severino caminhando sol a sol pela caatinga / Rapadura muita fome e um gole dessa pinga”.
Nem por isso ficam de lado as imagens cruas que podem ser recolhidas na vasta literatura a respeito dos retirantes. “A sua esperança já perdeu quando criança / Vida estranha muito estranha, mas é essa sua dança”: eis aí versos em que se percebe com clareza a ideia da sina, do suposto destino inalterável do sertanejo – Fabiano, personagem de Vidas Secas, de Graciliano Ramos repete ao longo de todo o texto que sabe qual é “seu lugar”, que sabe que nasceu “para servir os outros”, sem que seu destino possa ser mudado. E é exatamente em momentos como esse que a canção de Guilhermoso não cai na pura esculhambação – ainda que esteja eivada de humor.
Os versos da última estrofe talvez sejam os mais críticos da canção: “E a gente vai tão de repente nem parece repentista / Na história tá escrito: Tiradentes foi dentista”. Uma interpretação possível é a de que o Severino que “vai e não olha pra trás” chegue tão abruptamente à cidade, que se veja alienado da cultura musical sertaneja, daí a alusão ao “repentista”, que não guarda nenhuma relação de sentido com “dentista”, palavra com que rima. Pode-se ver, nesse trecho, a mesma sensação de Macabéa, personagem retirante de Clarice Lispector em A hora da estrela, que conhecia trechos da história universal e brasileira por meio da rádio-relógio, mas que se esquecera das cantigas de roda do sertão.
Fabiano, Macabéa e o Severino do Guilhermoso são personagens da literatura e do rock do Brasil – todas elas não conseguem vislumbrar uma alternativa de futuro, nem ser agentes do próprio destino. Utilizando-se de elementos clássicos do rock das décadas de 50 e 60 para debater um tema considerado “sério” na literatura brasileira, o Frango Selvagem do Rock and Roll (brasileiro) comete uma profanação fundamental para rechaçar a sisudez conservadora dos nossos intelectuais: mostra que é possível fazer crítica bem-humorada, forrada de rock and roll.