Acabei de ler o texto do novo colunista do Showlivre, Sidney Filho, e fiquei bastante empolgado. Depois da iniciativa de AD Luna, que nos apresentou a proposta do Showlivre Nordeste na coluna de 08 de agosto de 2007, agora ganhamos um autor cuja proposta é divulgar “o que está acontecendo no cinema, na música e nas artes de um modo geral da região Norte”. Iniciativa louvável, porque – ainda bem! – as manifestações culturais do Brasil transcendem, e muito, as das regiões Sudeste e Sul. Pois bem: a leitura atenta da primeira coluna de Sidney lembra que a Rolling Stone deste mês publicou a lista dos melhores discos nacionais de 2007, incluindo entre eles o álbum de uma banda acreana chamada Los Porongas. A revista deposita nessa banda as perspectivas de futuro do rock nacional. Boas-vindas ao novo colunista por chamar a atenção dos leitores para o Los Porongas. Explico o porquê.
Logo que comecei a escrever esta coluna, alguns leitores fiéis, em contato por email, questionaram-me a desatualização, argumentando que eu comentava, na maioria de meus artigos, canções de bandas dos anos 80: Legião Urbana, Titãs, Inocentes, Camisa de Vênus. Lembrei, em resposta, que, embora já com vinte anos ou mais de estrada, todas essas bandas, por um motivo ou por outro, ainda se fazem presentes, afinal suas canções ainda são atuais – pelo menos foi isso que tentei demonstrar nas colunas. Lembrei, ainda, que muitas delas continuam criando obras de grande qualidade. Mas a crítica dos leitores me parecia, de modo geral, procedente. Já contei aqui que fiquei, com o passar do tempo, preconceituoso e ranzinza, sobretudo no que diz respeito a trabalhos de bandas mais recentes. Como dei alguma razão aos leitores, fui atrás de Ludovic e Pitty, cujos trabalhos desconhecia, e me encantei com eles.
Aprendendo a pesquisar novidades no Myspace, deparei-me com os tais Los Porongas, que entraram definitivamente para minha galeria de prediletos. Graças ao site oficial dos caras, descobri a maravilha dos downloads na internet (pasmem, leitores, nunca baixei ilegalmente uma música sequer) e aprendi que “O sonho americano do rock brasileiro, impulsionado pelo boom mercadológico da década de oitenta, que se sustentou até o final dos anos 90, acabou”. A disponibilização de todo o conteúdo do CD não me impediu de comprá-lo; surpreendeu-me ainda mais o posicionamento da banda a respeito do mercado atual da música e a consciência a respeito do multiculturalismo brasileiro e dos movimentos de música independente. Comentando iniciativas como o Circuito Fora do Eixo e a Associação Brasileira de Festivais Independentes, o vocalista Diogo Soares afirma, no site, que “Com esse aquecimento cultural, as cenas locais produzem uma espécie de consciência coletiva de que é possível interferir no mundo, por mais distante que se esteja dos grandes centros culturais”. Em poucas palavras: os Los Porongas não só fazem rock brasileiro de primeira, como também compreendem com clareza o papel que cumprem na nova geração, proclamando a independência do conteúdo de sua obra por meio da veiculação via internet, fugindo aos moldes da indústria fonográfica.
Aos ouvidos de um habitante bitolado do e no Eixo Rio-São Paulo, a frase “estou ouvindo uma banda acreana de rock” pode soar estranha. Dependendo do interlocutor, pode até aparecer uma ponta de preconceito do tipo “e tem rock no Acre?”. Respondo com “Nada além”, terceira faixa do trabalho dos caras. Pode-se entender essa canção como uma reflexão sobre o mundo moderno do trabalho. “Uma palavra quente rente à boca / Alguma roupa rota ou assinada / Nada além de esconderijo / Tudo bem” são os primeiros versos, que alertam a respeito de quanto um emprego qualquer pode servir de muleta para uma vida sem sal: a vontade de dizer algo e não fazê-lo, o eterno baixar de cabeça às etiquetas e à idéia de que somos respeitáveis porque temos ocupação (ainda que ela nos faça mal) e o “tudo bem” diário que dizemos a tudo que nos humilha. “Anseios temperados com receios / Paranóias e outras dúvidas” são boa descrição da vida cotidiana do trabalho. E, na explosão da canção, uma seqüência de infinitivos verbais – grosseiramente, os “nomes” dos verbos, que, na língua portuguesa, são sempre terminados em “ar”, “er” e “ir”, além do verbo “pôr” e seus derivados –, formas que não indicam tempo nem modo e que, em “Nada além”, representam o “infinitivo perpétuo de vinte e quatro lentas horas”: “Ter que acordar/ Sorrir / Cumprir / Cumprimentar / Admitir / Fingir / Dançar, dançar...”. Não sei se o leitor percebeu, mas estamos diante de descrição sensível e desesperada da sensação de que as obrigações diárias, que muitas vezes nada têm a ver com o que de fato sentimos, acabam por tornar nosso cotidiano uma mera repetição de normas de boa conduta. É o “Nosso pequeno moderno mundo pequeno moderno / Nada doce, nada eterno / Infinidade de termos / Para sermos iguais / Nada além do que satisfaz”. A riqueza poética desse trecho está na simetria dos adjetivos “pequeno” e “moderno”, referindo-se ao substantivo “mundo” – que não é doce nem eterno, ao contrário de nosso dia-a-dia massacrante – e à multiplicidade de significação da palavra “termos”, que pode indicar as infinitas palavras que existem para designar o cotidiano imutável, ou o verbo “ter”, na primeira pessoa do plural, ligado a “nada além do que satisfaz”, interpretação que indica que tudo que possuímos nos aliena e nos oferece uma satisfação passageira. Em resumo: trata-se de uma canção a respeito das contradições do nosso pequeno mundo moderno, revelando que uma banda de rock acreana talvez esteja mais ciente do que ocorre no Brasil e no mundo do que muitos habitantes do Eixo Rio-São Paulo, enclausurados nos seus mundinhos intra-muros dos condomínios fechados.
Acrescente a essa informação, leitor, o seguinte trecho de texto do encarte do CD, espécie de Manifesto Poronga, em que se divulga a proposta da banda: “Contradição primeira. Urbanidade amazônica. Seiva que escorre nas veias. Ceia do cosmopolitismo. Correr pelos rios assim como se corre nas ruas”. Chamei o texto do encarte de “manifesto” porque o estilo lembrou-me muito o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade, com frases sem verbo, incisivas, diretas. Mais do que isso: o mais radical de nossos modernistas propunha, na década de 20, que os artistas brasileiros devorassem criticamente toda a cultura que vinha de fora, de modo a sintetizá-la em manifestações culturais que, guardando características nacionais, projetassem universalmente o Brasil. De certa forma, é exatamente o que propõem os Porongas na “urbanidade amazônica” e na corrida pelos rios assemelhada à corrida nas ruas. “Cultura pop?ular. Fora dos eixos e por dentro do sim”, no mesmo manifesto, é trecho que renova a proposta de combinação do popular e do pop, fora do Eixo Rio-São Paulo e para além das normas, fazendo rock brasileiro utilizando-se de referências locais. Aliás, a respeito delas, agrada-me bastante a declaração de Caetano Veloso, feita no período da Tropicália, movimento também influenciado pela Antropofagia oswaldiana, citada por Augusto de Campos, no artigo “Viva a Bahia-ia-ia!”: “Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”. Certamente, os Porongas não padecem das dificuldades técnicas de que fala Caetano, afinal utilizam-se de novas tecnologias para divulgar sua obra e interferir no mundo, mas preservam a convicção de negar-se a “folclorizar”, isto é, exagerar o elemento regional de sua obra, a Amazônia, afinal as letras não carregam nos lugares-comuns a respeito da floresta, com animais exóticos e tribos indígenas desconhecidas. O que vemos ali, de fato, é a urbanidade amazônica, sem que se carregue nas tintas do elogio ao pitoresco e ao bizarro, que tanto atrapalhou nossa literatura e nossa canção popular.
Lembremos, finalmente, que “porongas” eram suportes para uma lamparina de querosene, colocados na cabeça dos seringueiros para iluminar-lhes o caminho durante as madrugadas nos seringais, indício que a banda parece ter ciência de que serve de guia para o público, principalmente o do Eixo Rio-São Paulo, revelando-lhe um Brasil que ele desconhece. O projeto vai, contudo, além: em “Ao Cruzeiro” – canção que parece aludir, segundo o que li em alguns artigos, ao Daime – descobri que “A cabaça das idéias / Conhecida por cabeça / Quem sabe talvez mereça / Rosa, lírio ou azaléia”. Segundo uma breve pesquisa na Wikipedia, no Houaiss e no Aurélio, cabaça ou porongo (Lagenaria vulgaris) é uma “planta trepadeira, da família das Cucurbitaceae presente no norte e nordeste do Brasil”, com cujo fruto, desde os tempos dos primeiros índios brasileiros até hoje, se faz um recipiente para as mais diversas destinações; cabaça é, também, sinônimo de cuia, aquela que se usa, por exemplo, para tomar chimarrão no sul do país. O nome da banda, o manifesto, a canção e a multiplicidade de sentidos parecem culminar na seguinte interpretação: os Porongas, além de proporem a “urbanidade amazônica” muito além dos seus limites regionais, invadem o Eixo Rio-São Paulo para ensinar-lhe que há muito mais Brasis do que quer a nossa pífia arrogância, cuja imaginação fértil e contaminada de indústria cultural pinta esses outros Brasis como inóspitos e pouco urbanizados. Mais do que isso: a cabeça, representação tradicional da racionalidade, dará lugar, na obra dos Porongas, à cabaça, marca de regionalismo e universalidade nacional a um só tempo, ornada, agora, com flores. Resgatando elementos de nossa flora, exalando aromas amazônicos, sem folclorizá-los, os Porongas apresentam uma obra moderna, imersa no melhor do nosso rock, rescendendo a urbanidade; por meio do Manifesto Poronga do encarte, a banda ilumina ao público o caminho que está traçando, junto com ele: na esteira de movimentos como a Antropofagia, a Tropicália e o Manguebit, devora elementos estrangeiros e apropria-se de elementos regionais para projetar o Brasil no nosso “pequeno moderno mundo pequeno moderno”, interferindo, severamente, nele.
Senhoras e senhores, os Porongas trouxeram-me boas novas: eles viram a cara do rock brasileiro. E ele está vivo.
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