quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

O passado, o presente e o futuro



Fiquei pessoalmente impressionado com o documentário Botinada: a origem do punk no Brasil, produzido e dirigido por Gastão Moreira, porque algumas imagens mexeram comigo; as pichações nos muros da cidade, a iminência de brigas de gangues, algumas músicas estavam guardadas em algum lugar da minha mente. Eu era ainda criança quando o movimento punk eclodia em São Paulo e no ABC, mas é certo que alguns discos dos Garotos Podres, Inocentes e Replicantes foram – na minha quinta série! – fundamentais para que eu adquirisse gosto pelo rock e pela literatura.

Parece contraditório que músicas como “Papai Noel velho batuta”, “Pânico em SP” e “Festa Punk” tenham servido para alguém gostar da literatura chamada “culta”. Acontece, entretanto, que hoje, em perspectiva, tenho a impressão de que nenhum movimento do rock teve tanta consciência do papel que exercia no momento em que foi criado. No Brasil, a complexidade era ainda maior: muitos punks (não digo todos, porque generalizaria demais) sabiam que o rock, em termos mundiais, precisava de renovação e que essa renovação, em termos locais, era uma forma de contribuir com os temas da literatura brasileira e da MPB.

Dê só uma olhada em dois versos de “Festa Punk”, dos Replicantes: “Quero uma festa que não tenha Stones / gosto muito deles mas quero os Ramones”. Brilhante: gosto de Rolling Stones, mas prefiro os Ramones, numa expressão de que os punks sabiam o que estavam fazendo – pra mim é como se o autor dissesse “respeito o papel das bandas clássicas do rock, entendo que sem elas poderia não haver punk, mas é preciso renovar!”. Muitas bandas de hoje não se vêem inseridas na história do rock, apenas respondem às necessidades vorazes do mercado fonográfico. No punk havia questionamento, inconformismo, politização sem dogmatismo, intuito de mostrar a verdadeira realidade para transformá-la (ainda que com alguma ingenuidade e sem muito aprofundamento), sem a passividade que marca a música atual.

É fato: os punks contribuíram sensivelmente para aguçar a visão dos jovens da época a respeito do Brasil. “Johnny”, dos Garotos Podres, conta a história de um punk londrino procurado pela polícia por agressão e estupro. Preso, ele é extraditado para o brasil (assim mesmo, com letra minúscula) “aquele país que está na corda bamba / que só tem carnaval, futebol e samba / um país idiota cheio de moleques / onde ainda se toca discoteque”. Diante dessa “praga forte”, Johnny opta pela sentença de morte. Uma beleza de fragmento, porque toca nas feridas de nossa identidade – que, se, por um lado, nos diferencia do resto do mundo, também nos aliena e falseia a realidade –, maculada que está pela nossa associação a modismos que em nada dialogam com o que somos.

Os mais patriotas dirão que se trata de um texto em que o estrangeiro é valorizado e o Brasil, repudiado, e que o que está por trás desse discurso é uma idealização do exterior, a sensação de que somos “exilados em nossa própria terra” que vimos na coluna anterior, uma vontade de ser punk na Inglaterra e não no Brasil. Dirão também que falta “amor à pátria” ou “orgulho de ser brasileiro”. Tudo isso pode até ser verdade, mas a impressão que tenho é a de que o punk brasileiro era a expressão clara de vozes que ainda não se tinham feito ouvir na música brasileira. Afinal, quem é que desfruta, de fato, das maravilhas do Brasil? No livro Quem tem um sonho não dança: cultura jovem brasileira nos anos 80, Guilherme Bryan lembra que a MPB enriquecida pelo sucesso do final dos 70 e início dos 80 romantizava a pobreza ou idealizava regionalismos que nada tinham a ver com o ambiente urbano em que o punk se formou. E propõe a clássica frase de Clemente, que também abre o documentário de Gastão: “Nós estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para dizer a verdade sem disfarces (e não tornar bela a imunda realidade): para pintar de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer”. Simples assim: havia uma realidade brasileira que ainda não fora descrita, e os punks se propunham a contá-la.

Bem, mas e a literatura? Em 1977, ano em que o movimento punk já existia no Brasil, Clarice Lispector publicou A hora da estrela, história de uma retirante que vive no Rio, Macabéa, cuja vida era completamente tomada pelo consumismo e pela indústria cultural: ela se alimenta de coca-cola, sonha em ser atriz em Hollywood, coleciona anúncios de revista, mas não se dá conta da situação miserável em que vive, explorada e alienada. É numa visita a uma cartomante, Madama Carlota, que ela se dará conta de que seu futuro poderia ser diferente de seu hoje e seu ontem. Na saída do “consultório”, atordoada com a possibilidade de ter uma alternativa de futuro, Macabéa é atropelada por uma Mercedez, símbolo máximo do consumismo. Ora, parece que o recado de Clarice está dado: todos os que vislumbram um futuro diferente do presente e do passado serão vítimas da lógica do mercado e do consumo. Macabéa é vítima dessa lógica no exato momento em que percebeu que não é paciente, mas agente do próprio destino. Exatamente a mesma idéia que é tão fértil às letras punks: “E você o que está fazendo sentado atrás dessa mesa? Nada!”, do Olho Seco, em que o eu que cante convoca o ouvinte a revoltar-se, a ser agente do próprio destino. Ou os últimos versos de "Pânico em SP" (parece atual, não?), “Mas o que eles não sabiam / Aliás o que ninguém sabia / Era o que estava acontecendo / O que realmente acontecia”, em que, depois que todo o pânico do título é experimentado na cidade, fica sem resposta, para o ouvinte, o que é que realmente está acontecendo, o que o leva ao questionamento, a sair da posição de vítima, a avaliar a própria situação e revoltar-se. Em palavras bem simples: o tema da alienação do indivíduo, na cidade, afogado nos apelos de consumo, e as dificuldades de livrar-se dessa condição e tornar-se senhor de si que já figuravam na obra de Clarice está também nas canções punks, de forma mais contundente porque mostrada de dentro, isto é, cantada pela voz dos que mais sofriam as imposições do sistema e que pretendiam libertar-se delas e incitar seus ouvintes a fazer o mesmo.

O grande diálogo que parece haver entre a literatura culta e o movimento punk é que, naquela, há a busca por uma personagem brasileira que seja agente do próprio destino, que vislumbre uma alternativa de futuro radicalmente diferente do presente e do passado; neste, observa-se uma versão desse sujeito, mais ou menos ciente do lugar histórico, social e cultural que ocupa: é um brasileiro do final da ditadura militar, tempo de desemprego e de desilusões, a “década perdida” (terá sido ela perdida em termos culturais?), insatisfeito com o cenário musical repetitivo, em termos globais, e distante da realidade que era experimentada no Brasil. É exatamente essa consciência combinada ao inconformismo e à resistência à alienação que fazem do movimento punk um dos mais importantes movimentos musicais do país.

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