O rock, o cinema e a literatura sempre me fizeram tentar ser uma pessoa melhor. Já contei como foi que tomei contato com o Brasil de fato, aquele que todo mundo sabe que existe, mas que fazemos força para não ver, até que ele se faz presente e nos apavora e revolta – pode até nos fazer querer mudá-lo. Hoje vou contar como foi que o rock me ensinou a lidar com a morte e com as diferenças.
Do começo: no final de semana, fui assistir ao filme Olhe para os dois lados. Gosto de filmes em que várias histórias, de personagens que se conhecem ou não, entrecruzam-se, compondo um todo. Não sou crítico de cinema, mas acho que posso dizer que um dos temas desse filme é a nossa capacidade de lidar com a morte – o que acaba sendo, de certo forma, uma maneira de lidar com a vida. Duas das personagens haviam perdido os pais; também perdi o meu. Identifiquei-me, emocionei-me, mas não fui para casa injuriado, como costuma acontecer quando assisto a um filme, ouço uma música ou leio um livro que mexem comigo. Olhe para os dois lados, embora exija algum estômago, não tem um final pessimista ou deprimente, ao contrário: abre-se, até, ao final, a possibilidade de lidar melhor com a morte e com a vida por meio do amor. Alguns leitores jamais me perdoarão esse clichê, mas que vou fazer? É isso mesmo: no lixo de mundo em que vivemos, talvez a única alternativa de descanso esteja no amor, em todas as suas formas. Na sexta anterior, Marcelo Nova me avisava, contudo, que “não vai haver amor nessa porra nunca mais”. Acresça a esse contexto o seguinte dado: eu não ia ao cinema havia muito tempo, revoltado com o desrespeito das pessoas, que começa com espertinhos furando fila, passa por correrias e empurrões na entrada e termina com toques histéricos de celular, durante o filme. Foram anos de terapia para poder entender que nem todo mundo enxerga o cinema de sábado ou o show de rock como festas para se libertar. Para a maioria das pessoas, aliás, esses eventos são puro entretenimento, servem apenas para diversão, para esquecer o mundo que as rodeia. Para mim não: sempre tentei aprender com os filmes, os livros e as canções uma maneira de ser melhor e de fazer o meu melhor.
Pois bem. Fui dormir com “o amor no coração” – esse clichê já é auto-ironia – e acabei sonhando com meu pai. Creiam-me ou não os leitores, garanto-lhes: meu sonho tinha trilha sonora; era "Dias de luta", do Ira, letra de Edgard Scandurra. Lembrei-me de que ouvia o LP Vivendo e não aprendendo quando tinha por volta de dez ou onze anos. Lembrei-me, também, de que essa canção surgia-me toda vez como uma incógnita, porque me mostrava algo que eu só entenderia quando meu pai estava próximo da morte: era possível entendê-lo. “Só depois de muito tempo fui entender aquele homem / eu queria ouvir muito mas ele me disse pouco”: o primeiro desses versos me soava como uma espécie de profecia, que eu torcia para que se realizasse rapidamente; o outro me contava uma realidade que eu conhecia bem. Os dois seguintes, por sua vez, me davam a fórmula para romper a distância que havia entre mim e meu pai: “Quando se sabe ouvir não precisam muitas palavras / quanto tempo eu levei pra entender que nada sei”. Ora, era óbvio – hoje percebo, em perspectiva – que meu pai me diria pouco. Eu é que precisava aprender a ouvi-lo. Eu não sabia nada.
Antes que uma coluna sobre rock e literatura se torne uma coluna de auto-ajuda, com mensagens do tipo “ouça seus pais e entenda que a geração deles é diferente da sua”, faço um corte. A letra de "Dias de luta" nos conta, de certo modo, que a incerteza em que nossas relações estão metidas está diretamente associada a nossas formas de ver o mundo; a arte, por sua vez – para mim, especialmente, o rock – sempre pôde nos ajudar a ir além delas. “Se meu filho nem nasceu, eu ainda sou o filho / se hoje canto essa canção, o que cantarei depois / cantar depois... o quê?” são versos que me explicavam e me explicam que ser filho é diferente de ser pai e que era cômoda minha revolta “ele-não-me-entende-porque-sou-jovem-e-ele-é-velho”. Ou pior: eu é que não o entendia, porque era jovem. Parece-me, súbito, que estou lendo "A terceira margem do rio", de Guimarães Rosa, em que o pai do narrador, um dia, sem motivo aparente, manda fazer para si uma canoa e nela fica, sem ir a parte alguma, a esmo, derelito, no rio. O filho não compreende a atitude do pai – loucura não se admite que seja, não se dizia mais a palavra "doido" em sua casa – e cria, no cotidiano, semelhanças por meio das quais preserva-lhe a imagem: “Não queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: ‘Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim...’; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade”. O narrador sente a mesma dor que o eu que canta em "Dias de luta" (e é por isso que me identifico com eles): “Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem outras. E fui tomando a idéia”. Ao tentar ocupar o lugar do pai, o narrador depara-se com uma figura que lhe acena da canoa e que parecia vir “da parte de além”. Apavorado, foge e se lamenta: “Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado”.
É interessante notar que os mesmos questionamentos surgem nas duas obras: por que foi que nossos ancestrais agiram assim? Por que é que demorei tanto para entendê-los – se é que os entendi? Que é que a morte deles fez comigo? A impressão que tenho é que, quando somos mais jovens, passamos por cima de tudo, sem nos preocuparmos com quase nada além de nós mesmos. Depois de uma série de dias de luta é que acabamos entendendo quais foram nossos dias de paz, como meu último sábado: assisti ao filme e entendi meu pai porque sonhei com uma canção do Ira e com um conto de Guimarães Rosa. Acordei alegre, sentindo-me como se tivesse quinze anos, começando tudo de novo, como se fosse um filho a quem os pais dedicam "Amor incondicional", título de outra canção do mesmo Edgard Scandurra – em parceria com Sandra Coutinho – em seu trabalho solo mais recente, em que o pai observa o filho e recebe, de pronto, respostas a todas as perguntas de Dias de luta: “e o brilho intenso ofusca a visão / faz abrir o olhar do coração / irradiar o amor / amor incondicional”. O rock, o cinema e a literatura sempre fizeram de mim uma pessoa melhor, porque sempre me forçaram a entender as diferenças. Dias de luta preparava-me, quando eu tinha dez ou onze anos, para a morte de meu pai. Hoje, em perspectiva, entendo-o mais do que nunca, nos erros e nos acertos.
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