sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O mestre, o ócio, Canudos, a energia nuclear e Jorge Mautner

Na coluna do dia 07, o mestre Clemente Nascimento contou que lhe faltava ócio para escrever, lamentando o cotidiano vertiginoso em que todos vivemos, não só ele. O excesso de trabalho perturba as percepções, também comprometidas pela torrente inesgotável de informação: temos de conhecer todas as bandas novas, assistir aos últimos lançamentos, ir aos lugares mais badalados. Em poucas palavras, a quantidade prevalece sempre sobre a qualidade, restando pouco tempo para a reflexão e o desfrute estético e o questionamento do mundo. Euclides da Cunha, curiosamente, tinha a mesma sensação que Clemente, há mais de cem anos, quando escreveu a introdução de Os sertões: “Escrito nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante, este livro, que a princípio se resumia à história da Campanha de Canudos, perdeu toda a atualidade”. Euclides acompanhara a última das quatro expedições militares do governo, em 1897, a Canudos, como correspondente do Estadão, e só conseguiu publicar a obra que o imortalizaria em 1902.

Partilho da mesma sensação: perdi-me, no último mês e meio, na redação de uma monografia de conclusão de um curso de pós-graduação. Mas tinha comigo a sensação de que o mês de julho não seria perdido, porque, nele, eu também prepararia uma aula de literatura a respeito de Os Sertões, obra que não pode nem deve ser lida apenas uma vez. Trata-se de uma reflexão ainda bastante atual a respeito do Brasil, apesar de estar carregada de teorias que parecem, aos olhos do leitor do século 21, bastante preconceituosas.


Embora pouca gente tenha lido, todo mundo se lembra desse livro, dividido em três partes: “A terra”, em que o autor descreve o sertão baiano, com a intenção clara de formulá-lo como espaço inóspito e hostil em que “O homem”, da segunda parte, teve de se virar para sobreviver. Em “A luta”, Euclides relata as quatro expedições militares a Canudos – as três primeiras completamente fracassadas. Influenciado por tendências deterministas e evolucionistas do final do século XIX, o autor monta a seguinte equação: a adaptação dos habitantes a ambiente adverso, associada a circunstâncias históricas especiais – no caso brasileiro, de modo geral, a mestiçagem, o atraso, o abandono – deu origem ao conflito de Canudos. Algumas frases do autor assustam – “o mestiço é, quase sempre, um desequilibrado” é uma delas – mas precisamos entender Os Sertões como um texto em que a reflexão do próprio autor está em processo, afinal ele próprio, que acreditava na missão “civilizadora” das forças republicanas, descreve-lhes a crueldade e, em última análise, a barbárie. Não tenho espaço aqui para ir a fundo na análise da obra – nem sei ainda se sou capaz de tal tarefa – mas é preciso ficar claro que Euclides, ao longo do texto, vai, grosso modo, perdendo a crença nas forças oficiais, demonstrando, por meio de episódios como a degola dos prisioneiros canudenses, que elas não tem nada de civilizador e que, no Brasil, importamos apressadamente idéias estrangeiras, como a República, naquela altura, e as introduzimos por aqui sem considerar nossas próprias características – daí espetáculos dantescos como a Campanha de Canudos, massacres de sem-terras, estupros de mulheres que estão em pontos de ônibus e outros episódios hediondos que abundam em nossa história recente.


No mês passado, os grandes jornais noticiaram que o governo federal tocaria adiante o projeto de Angra 03, apesar de todas as ressalvas que o Ibama fizera. Não sou nenhum ambientalista, mas, pelo que pude entender, um grande problema das usinas nucleares são os detritos resultantes de sua atividade – o lixo tóxico nuclear, para o qual ainda não há destinação segura. Impressionou-me o argumento de um de nossos ministros: ora, pessoal, dentro de dez anos o homem já terá encontrado alternativa segura para esse problema; além disso, argumentava o sábio ministro, não podemos ficar para trás no que diz respeito às políticas energéticas de países desenvolvidos – cuja maior expressão são, e serão sempre, os Estados Unidos.

Euclides da Cunha estava certo: importamos alternativas e idéias de toda ordem, sem considerar o que somos. Nesse caso, é pior: depois de ler O Ponto de Mutação, de Fritjof Capra, não dá mais para acreditar que a energia nuclear é uma alternativa segura. A geração de Clemente também já protestou – ouça "Chernobyl", dos Replicantes, ou "Angra dos Reis", da Legião Urbana, para entender o que quero dizer. Mas o protesto é anterior, e pode ser encontrado em dois dos maiores nomes de nossa canção popular: Jorge Mautner e seu parceiro inseparável, Nelson Jacobina.

É tentador analisar aqui o “Maracatu Atômico”, recuperado por Chico Science e a Nação Zumbi – cuja sensibilidade também já dera vivas a Zapata, Sandino, Zumbi, os Panteras Negras, Lampião e o Antônio Conselheiro de Canudos. Há, entretanto, as “Cinco Bombas Atômicas”, do mesmo autor, que me parecem mais saborosas para este texto. No mais, aquele poeta e aquela banda merecem uma coluna só para eles. (Além de um outro medo muito meu: a década de noventa está às portas de completar vinte anos, o que deve lhe render a pecha de cult em breve; daí a transformá-la em mais uma moda que precisa ser conhecida por todos falta um passo...).

Pois bem, nas “Cinco Bombas Atômicas”, Jorge Mautner sintetiza todas as aflições de Euclides e Clemente: “Cinco bombas atômicas / Em cima do meu cérebro / Quando eu era pequeno / Saudades eletrônicas / e mais: cinco bombas atômicas / De manhã muito cedo”. O leitor mais arguto já deve ter percebido: o eu que canta está bombardeado por aquilo que gosto de considerar a neurose da guerra atômica, desde criança; as saudades são eletrônicas, e me parecem similares àquela vontade incontrolável de saber “tudo o que está rolando”, aquela aflição por “estar antenado”. Em suma: o eu que canta está imerso no mundo da tecnologia e da paranóia do American Way of Life, aparentemente acuado por ele, sem saída. No plano sonoro, a repetição dos versos acima é seguida de um solo de violino elétrico – marca registrada de Mautner, instrumento em que se sumariza a capacidade desse compositor de associar o universo clássico ao popular – em que a canção lamenta aquele cerco em que se vê o eu que canta.
Na segunda parte da canção, toda essa sensação se metamorfoseia: “Da janela do quarto vejo / Você, meu grande desejo / Que eu quero engolir / Nesse próximo beijo”. Ora, nada poderia soar mais anos 60/70 – a alternativa para o “consumo” da paranóia e da propaganda nuclear é o amor, que não está na TV ou no rádio, mas num lugar que se pode observar da própria janela, ali do lado. A mesma lógica está no “Maracatu Atômico” – atrás do arranha-céu tem o céu, no meio da couve-flor tem a flor, quem segura o porta-estandarte tem arte – em que o adjetivo “atômico” perde a feição pejorativa para assumir um novo sentido, em que o desenvolvimento tecnológico assume o papel que deveria ter: o de instrumento para obter o desfrute estético, o ócio pelo qual meu vizinho de coluna tanto clamava.

De um lado, Clemente e Jorge Mautner, ambos otimistas – o primeiro mantém o bom-humor em tempos de falta de ócio; o segundo consegue ver o céu e o amor além dos arranha-céus da cidade, ainda que não haja estrelas; de outro, o ministro, também otimista, cuja fé no desenvolvimento de um destino seguro para o lixo nuclear me parece no mínimo duvidosa, eivada de interesses de outra natureza; de outro, Euclides da Cunha – que termina Os sertões com apocalípticas “Duas Linhas”, em que deixa em aberto toda a fé na civilização, afirmando que ainda não existe um psiquiatra para as loucuras e os crimes das nacionalidades.

O apresentador do Showlivre estava coberto de razão ao dizer que a celeridade de nossos tempos embota os sentidos. Não temos tempo para ler um livro como Os sertões, porque temos de ler e ouvir os últimos lançamentos estrangeiros, não para degustá-los ou refletir sobre eles, mas para dizer que os conhecemos (há também algo de Adorno nesta reflexão, mas citemos um mestre de cada vez). Não temos tempo para lembrar que Fritjof Capra, os Replicantes, a Legião Urbana e, antes deles, Jorge Mautner já nos alertavam dos males da energia nuclear, porque temos de ser uma nação desenvolvida, alinhada com o que se faz de mais moderno, lucrativo e produtivo no mundo. Vivemos num tempo em que imaginar uma sociedade mais solidária é utopia – no pior sentido que essa palavra pode assumir, o de “sonho impossível” – mas em que contar com a possibilidade de destinação do lixo nuclear é política de estado. Lembremos que, há mais de vinte anos, não desenvolvemos tal tecnologia, apesar de todos aqueles alertas, de todos os acidentes, de todos os males.É que ainda não existe um psiquiatra para as loucuras e os crimes da humanidade.

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