
Tome-se como bom exemplo “Chuta lata”, terceira colocada na I Semana da Canção de São Luís do Paraitinga. Berço de festas populares tradicionais do Estado de São Paulo, como o Carnaval e a Festa do Divino, além de abrigar festivais de marchinhas, de músicas juninas e de músicas sertanejas de raiz, a cidade vem se tornando um importante pólo de compositores brasileiros. O mais interessante é que, apesar de ser extremamente zelosa com a tradição popular, São Luís do Paraitinga também abre as portas a composições de matrizes mais modernas, daí a conquista do Julia Car. De autoria de Julli Pop e Jotacê, “Chuta Lata” namora, em termos entoativos, com o rap à brasileira, mas vai, no todo da composição musical e na letra, muito além dele. Aliás, nessa canção, a ponte entre tradição popular, de um lado, e gêneros musicais recentes, de outro, é flagrante: os versos do refrão são glosados nas estrofes, exatamente como ocorria com os cancionistas medievais, cujas composições são as ancestrais mais distantes dos repentes da canção popular. O verso “um ato pequeno inicia o contemporâneo” aponta para a ciência que os autores têm de associar esse cabedal do passado às batidas eletrônicas do presente.
A temática e a ambiência da letra, contudo, são eminentemente urbanas e atuais, anunciadas pela linguagem coloquial das ruas: “Chapando o crânio eu fiz a rima ali no vasco / Das ruas da Sul chutando lata até Osasco”. Não faltam aliterações (“Entre compassos e passos / Estrofes letras e traços / Passo minha vida assim / Assim minha vida passo / No contrapasso,ultrapasso / Assino embaixo o que faço”) que dialogam com as batidas eletrônicas, conferindo-lhes a unidade que faz a canção obter o efeito persuasivo apresentado nos últimos versos, em que é reiterada a postura contestatória dos autores: “Música arte e cultura independente de espaço / Não me embaraço, nem me cadencio ao normal / Mesmo quando excluso do quesito social / Pra chegar onde eu cheguei, muita lata eu chutei / Rimei, cantei, chapei, as vezes improvisei, declamei / Poesia urbana aos pontos cardeais / Em meio ao caos do holocausto eu propaguei a paz”. Independência dos grandes canais da indústria fonográfica, resistência à alienação e à exclusão social, formulação de uma “poesia urbana” e propagação da paz: estão assim condensados, em poucos versos, grandes temas da arte e da cultura de nosso tempo, observados numa perspectiva extremamente convincente, porque nos é mostrada em primeira pessoa.
A riqueza da sonoridade dos versos está presente em todas as canções – e seria enfadonho, nesta coluna, comentar todas elas. A mais longa do trabalho – porque me parece ser a mais densa – é “Olha... desomenagem a Pero Vaz”. A associação com a carta de Pero Vaz de Caminha é direta: espécie de “certidão de nascimento” do Brasil, o texto de Pero Vaz deixa transparecer, nas palavras do crítico literário Alfredo Bosi “a ideologia mercantilista batizada pelo zelo missionário de uma cristandade ainda medieval”. No trecho final, o mais famoso da carta, o escrivão da frota de Cabral – além de constatar que, à primeira vista, não encontrou por aqui metais preciosos e que é preciso, antes de tudo “salvar esta gente”, os indígenas – faz as vezes de profeta, lançando um dos maiores clichês a respeito do Brasil (que dura até hoje): o elogio à exuberância natural e à fertilidade desta terra (“querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”). Encerra-se o texto com a data e o primeiro nome que o Brasil teria: “Deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500”.
É exatamente todo esse trecho famoso que é declamado, no início da canção do Julia Car, por uma criança numa entoação que, obviamente, dá ao texto um ar de conto de fadas. Daí o primeiro verso – “Era uma carta meio encantada pra se ler” – seguido de “Todas as ruas eram turvas antes do dia nascer”, talvez em alusão aos rios, cujas águas Pero Vaz insistiu em comentar. Logo a seguir, descobrimos que estavam “Tatuadas nas costas do povo, as linhas coloridas de erê” e que essas linhas “Abriram caminhos suntuosos, pra população sorrindo crescer”. Do momento da redação da carta de Pero Vaz, em que não havia negros no Brasil – nossa infância histórica – a uma referência ao erê que, no candomblé, é o espírito de criança que cada um guarda dentro de si (devo esta explicação a minha irmã, que estuda as os cultos afro-brasileiros há um bom tempo). Parece-me uma das descrições mais sensíveis do alvorecer de nosso país, exatamente porque é multicultural, como é o povo brasileiro.
Não nos esqueçamos, contudo, que a canção é uma desomenagem a Pero Vaz. É por isso que, depois de nascida e crescida, nossa gente assume forma de ser humano adulto (“Tem gente que se mata pra ter / Tem gente que mata pra conseguir”), com mais dores do que delícias. Parece que ficam saudades do universo encantado e puro das crianças e das linhas de erê. Aguça-se a necessidade de retorno a esse universo pueril e onírico nos versos “Olha! Mano que é mano parado / Olha! Mano que é mano pelado / Olha! Mano que é mano. / Cadê? Sumiu fome comeu”, já que a exclamação “Olha!” lembra o estarrecimento dos colonizadores ao pisar as terras brasileiras quando viram que os índios não escondiam as “vergonhas”. O leitor já deve ter se lembrado de que, muitas vezes, a inocência dos índios, que andavam pelados, levou os colonizadores a comparar a América com o Paraíso bíblico, aquele que só se estragou porque Adão e Eva perderam a inocência (exatamente a característica marcante das crianças). Em suma: perdeu-se a pureza primordial do erê.
Finalmente, num arranjo de guitarras muito mais pesado, em voz radiofônica, aludindo à urbanidade que vai no título do disco e na alma da banda, descobrimos que o mano sumiu porque “neste país se come crença” e que aqui “Cabeça já não pensa pesar já não se quer”. Por aqui, vigora a política do “pão e circo” – “Se tiver samba é bom, se tiver pão também / Se não tiver sorriso é o que se quer” –, que extermina qualquer resto do mundo encantado, infantil e inocente. Mas, num acalanto, como se cantasse uma canção de ninar para o ouvinte, “Olha... desomenagem a Pero Vaz” retorna à voz da criança declamando a carta, enfatizando o local e a data, “Deste Porto Seguro, da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500”. Trata-se da tentativa de recuperação, de resgate daquele universo puro, que conforta o ouvinte e remete, mais uma vez, à paz.
“Acalantar” é o título de outra canção do disco, mas poderia ser a síntese de Urbano, do Julia Car. Os integrantes do conjunto afirmam que pretendem fazer “arte para mover e grudar: idéias, conceitos e sensações”. Sem abandonar as tradições brasileiras – a literatura popular, a Carta de Pero Vaz de Caminha, o candomblé –, mas experimentando livremente o universo da música eletrônica, no corpo, do rock, na atitude combativa, e do pop, na alma, o Julia Car chega, como afirma na canção “Gandaia”, cantando versos subversivos que fez para mudar (o Brasil e o mundo). E já está mudando.
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