Uma das criações mais assustadoras da história de nossa literatura é o Emplasto Brás Cubas, medicamento idealizado – mas nunca concluído – por Brás Cubas, o defunto-autor de Machado de Assis. Trata-se de um “emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”. A crítica já analisou essa panacéia machadiana de várias maneiras; agrada-me mais a análise do crítico Roberto Schwarz, que entende que aquele “santo remédio” é, entre outras coisas, uma referência ao contraste entre as curas antigas e a medicina moderna da época (o livro foi publicado em 1881). Ao mesmo tempo, Brás Cubas nos deixa perceber que depositava em sua invenção a esperança de alcançar a fama, de tornar-se conhecido por meio de um produto-mercadoria: “o que me influiu principalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras: Emplasto Brás Cubas”. Uma confissão e tanto: o alívio dos sofrimentos da humanidade, suposto objetivo primeiro daquela criação, só reveste a ambição desmedida – de gosto bastante ianque – de celebrizar-se por meio de um produto. Alguma coisa do gênero Henry Ford, ou, mais recentemente, Bill Gates, homens cuja personalidade confunde-se com os produtos que criaram. Os “casos de sucesso” das escolas de administração estão cheios de nomes como esses.
Mas Brás Cubas está longe de ser um “empreendedor” – é escravista, preguiçoso, homem da elite brasileira do século XIX, que, apesar de aspirar à modernidade da sociedade capitalista, julga insuportáveis as idéias da livre iniciativa e do trabalhado assalariado, obrigatoriamente associadas à criação de um produto de massas, como é o emplasto (talvez por isso mesmo o defunto-autor morra “de idéia fixa”, devido à mania de tentar criar o tal medicamento, sabendo que não suportaria fazê-lo). E talvez esse seja um dos motivos pelos quais Machado de Assis é um dos nossos grandes autores: em seu primeiro grande romance, vislumbra-se, talvez, o pai dos antidepressivos – lembre-se de que o emplasto é “anti-hipocondríaco” e de que hipocondria, além de ser um estado obsessivo com a própria saúde, também pode ser entendido como “melancolia, tristeza profunda”. Produção em massa das pílulas da felicidade, sonhos de fama por meio de um produto cuja grande finalidade é a obtenção do sucesso particular, pintada com tintas “verdadeiramente cristãs”: de fato, parece-me que Machado de Assis via muito além de seu tempo.
Brás Cubas morreu, nascemos nós todos, morreram também meu pai e meu avô – este era natural de uma pequena vila no Minho, região do norte de Portugal. E lá fui eu, nas últimas três semanas, à cata de minhas raízes, com saudades de um lugar que eu sequer conhecia, rever parentes queridos de que pouco me lembrava e amigos que meu pai fez para mim há muito tempo. Fui disposto a topar com o desconhecido para encontrar-me – ou perder-me, definitivamente, de mim mesmo, numa alusão à fala de um personagem português do filme Terra Estrangeira. Eu já tinha estudado as literaturas de língua portuguesa – não só a de Portugal, mas também a dos países africanos; já conhecia alguns nomes do fado e já me encantara com Madredeus. O que eu não supunha era que encontraria no rock português um dos compositores que mais me sensibilizaram nos últimos tempos: António Variações (assim mesmo, com acento agudo, essa é a grafia de lá). Na verdade, eu não supunha que ataria, graças às composições desse roqueiro visionário português, algumas pontas da minha vida: o silêncio de meu pai, que nunca entendi e que já comentei antes nessa coluna; a melancolia de meu avô, formado em medicina, rodeado de caixas de remédio e jogando baralho.
Em poucas palavras, António Variações nasceu na mesma região que meu avô e no mesmo ano em que meu pai. Trabalhou no campo com a família, mas ainda jovem abandonou a região, que ainda vivia da agricultura; foi a Lisboa, depois a Londres, onde trabalhou como lavador de pratos, e Amsterdã, onde aprendeu o ofício de barbeiro. De volta a Portugal, quase se tornou um dos grandes nomes do rock daquele país, que, da mesma forma que o Brasil, passou por uma grande revolução comportamental na década de oitenta, em que estava livre das amarras de uma ditadura mais longa que a nossa. Teria brilhado muito mais se não tivesse morrido prematuramente – há a especulação de que tenha sido ele a primeira vítima pública da AIDS em Portugal. Já bastavam a origem e o ano de nascimento, o nome artístico inusitado e a morte prematura que me lembra Cazuza para que fosse figura de bastante interesse. Mas tem mais: as canções são espetaculares.
Eu precisaria de infinitas colunas para contar quão interessante é a obra do cara, que passa por tentativas de associação da cultura popular com o rock e por homenagens à famosa fadista Amália Rodrigues. Opto, contudo, por uma canção que me impressionou enormemente por dialogar com o emplasto machadiano: "Toma o comprimido", de 1981. Numa guitarra simples, acelerada, com pouca distorção, ouve-se: “Tu estás tão acorrentado / À sombra que tens ao lado / Não consegues apagar / as marcas desse passado / Que teimas em recusar / Mas a mistura da drogaria / E tens a cura para mais um dia”. E o refrão: “Toma o comprimido / Toma o comprimido que isso passa”. A temática é exatamente aquela que Machado propusera exatos cem anos antes (o acúmulo de acasos começa a me assustar): o medicamento como panacéia, como remédio para todos os problemas da humanidade. A canção de António Variações parte para a ironia – recurso também muito recorrente na no autor brasileiro: além de curar a depressão de “mais um dia”, o comprimido pode ser tomado pelas moças que se acham gordinhas, mas, se elas emagrecerem demais, serve para engordá-las; também cura febres causadas por dor de dente. Algumas pequenas frases – que nos lembram que um dos primeiros “reclames” do refrigerante mais vendido do mundo era “Coca-Cola... faz um bem!” – expõem a ironia: “Toma já um Melhoral / Porque é bom e não faz mal / Além disso é legal”, ou “Tome e fique confiante / Vai ficar muito elegante / Isto é melhor que um purgante” e “É um milagre da medicina / Que é o avanço da aspirina”. No plano sonoro, a composição lembra uma música de propaganda, reforçada no refrão e no título, por meio do verbo no modo imperativo.
Machado de Assis e António Variações perceberam a dupla falência do mundo em que viviam: ambos cresceram em países periféricos, que passavam ao largo da modernização tecnológica e que tardaram a ingressar nos modelos mais livres de sociedade; ao mesmo tempo, ambos olhavam com bastante desconfiança as supostas maravilhas que esses modelos de sociedade traziam: é assim tão festivo (plagiando as palavras de Sammliz, do Madame Saatan, no Estúdio Showlivre) o mundo que carrega consigo a depressão e o vazio das horas intermináveis de trabalho que não realiza, de diversões fúteis que alienam, de produtos de utilidade relativa, de propagandas que grudam nos ouvidos, da indústria farmacêutica que se aproveita de tudo isso?
Os leitores que se lembraram de que há comprimidos legais e ilegais e de que a canção de António Variações também alude a eles não estará equivocado: pode-se ir muito além na interpretação. Numa noite, revisitando uma Lisboa que eu já conhecia dos poemas de Fernando Pessoa, deixei meus companheiros de viagem a dormir e abri um bom vinho, que lá se pode comprar num supermercado a menos de dois euros. Tomei-o todo, cheio de saudades da melancolia de meu avô e do silêncio de meu pai, ouvindo rock em português de Portugal, que nunca foi tão brasileiro.
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