quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Reinvenções amorosas de Cazuza

Escrever sobre as composições do Cazuza é um problema: ele beira a condição de unanimidade nacional. Todos o chamam de “grande poeta” da geração da década de oitenta, ao lado de Renato Russo; algumas de suas canções despontam num limite muito tênue entre a MPB e o rock nacional, o que lhe dá uma multidão de fãs; seja por meio da biografia escrita pela própria mãe, seja pela recente versão do livro para o cinema, a morte prematura só acentuou a consagração que ele já tinha obtido em vida; suas canções foram gravadas por intérpretes de peso da música nacional, de Ney Matogrosso a Cássia Eller. Enfim: embora pareça tarefa fácil analisar qualquer uma de suas obras, dada a sua ampla aceitação, fazê-lo será sempre tarefa espinhosa. Se nos deixarmos contaminar pela idolatria à sua memória, corremos o risco de encontrar em suas canções muito mais do que aquilo que de fato existe; se não as analisarmos levando em consideração o todo em que estão inseridas, acabaremos por reduzi-las a menos do que aquilo que de fato são.

O fato é que acontece com Cazuza algo que não é novidade na história da crítica de arte em geral: uma certa idolatria à personalidade do artista, que acaba por confundir, muitas vezes, aqueles que querem analisar-lhe a obra. Me parece natural que queiramos conhecer a vida dos nossos autores. O crítico literário Antonio Candido já avisava, contudo, num texto sobre Machado de Assis, que “temos uma tendência quase invencível para atribuir aos grandes escritores uma quota pesada e ostensiva de sofrimento e de drama, pois a vida normal parece incompatível com o gênio”. Não tenho dúvida de que a personalidade anárquica e hedonista de Cazuza tenha influência direta sobre sua obra, mas vou tentar deixar de lado a vida desse artista para tentar entender o encanto de algumas de suas letras.
Vamos tentar encontrar, então, em alguns textos de Cazuza um aspecto fundamental de sua obra – o que chamaremos de “a reinvenção do amor” – sem levar em conta sua vida, cheia dos excessos e do sofrimento que serviram para transformá-lo em ícone de uma geração. As aulas de literatura romântica estão cheias de biografias de escritores que sofreram de amor e morreram cedo de tuberculose ou de excessos, e esse comportamento talvez seja mais conhecido do que os poemas que consagraram esses escritores. Gostamos mais de saber que Machado de Assis era mestiço de origem humilde do que enfrentar os textos de nosso maior escritor. Talvez a imagem de Cazuza como o jovem carioca que tinha uma banda de rock, mas que a abandonou para namorar a MPB, para viver uma vida desregrada, intensa, encante mais do que a sua própria obra. E é isso que vamos evitar neste texto.

Exagerado começa com uma declaração de amor que cheira aos arroubos do Romantismo mais exaltado: “Amor da minha vida / Daqui até a eternidade / Nossos destinos foram traçados na maternidade”. Esse eu que canta, entretanto, passa longe dos amantes das histórias tradicionais de amor, pois é cheio de imperfeições: “Te trago mil rosas roubadas / Pra desculpar minhas mentiras / Minhas mancadas”. Ele é exagerado, joga-se aos pés do ser amado, porque adora um “amor inventado”.
Gosto do último verso desse refrão: nele, revela-se que o eu de Cazuza tem plena ciência de que o amor perfeito, como aquele sugerido no início da letra, é pura ficção, isto é, coloca em jogo a idealização desse sentimento. Trata-se de uma proposta, a meu ver, bastante interessante: degustemos a loucura do amor – que não muda com o tempo –, mas façamos isso sem a ilusão de que toda história de amor tem um “final feliz”, com casa-castelo onde príncipe e princesa vivem juntos para sempre, guardada por um cachorro bonito, habitada de filhos exemplares e contaminada de alegria do tipo propaganda de manteiga no café da manhã.

Essa mesma reinvenção do amor permeia O nosso amor a gente inventa (estória romântica), cujo título parece confirmar as hipóteses acima. Trata-se de uma estória de amor, pura invenção nossa, romântica. “O teu amor é uma mentira / que a minha vaidade quer” são versos cantados por um eu-lírico ciente de que o amor romântico é inventado, quase lamentando a inexistência real daquela ficção, como se, para viver, para sustentar a própria vaidade, precisasse dela. O amado “não pode ver que no meu mundo / Um troço qualquer morreu / Num corte lento e profundo / entre você e eu”, trecho em que a palavra “troço” e o desvio em relação ao uso do pronome “eu” (segundo a tradição gramatical, correto seria usar o pronome “mim”, o que estraçalharia toda a estrutura das rimas) revelam uma linguagem informal, de um cotidiano em que “ficou tudo fora do lugar / café sem açúcar / dança sem par”. Resta o pedido quase desesperado: “Você podia ao menos me contar uma estória romântica”, estória na qual o esfacelamento real das relações amorosas não aconteceria.

É o mesmo desejo expresso em Todo amor que houver nessa vida, em que o eu diz querer “a sorte de um amor tranqüilo / com sabor de fruta mordida”. Mesmo nessa idealização, ele não se esquece de que precisará “de um trocado pra dar garantia”, de “algum veneno anti-monotonia” – uma daquelas expressões que todos queríamos ter criado, mas que só poderia ser fruto do poder criativo de um poeta do porte de Cazuza – e de “algum remédio” que lhe dê alegria, numa espécie de constatação de que as imperfeições do amor e da vida só são suportáveis por meio de paraísos artificiais, como o amor ideal, as drogas ilícitas, o álcool e os anti-depressivos, diferentes versões do “veneno anti-monotonia”. O vislumbramento de um amor perfeito sempre está resfriado pela sombra da “poesia que a gente não vive”, cuja função é “transformar o tédio em melodia”. Sempre a sensação de que o amor ideal não pode sobreviver às premências da vida real; sempre a perspectiva de que a vida real seria insuportável sem a utopia do amor ideal, ainda que ele não seja factível.
Em Faz parte do meu show, o eu que canta faz “promessas malucas tão curtas como um sonho bom”, inventa “desculpas” – semelhantes às de Exagerado – e vive “num clipe sem nexo, um pierrot retrocesso, meio bossa-nova e rock and roll”. Eis aí a amplitude da reinvenção do amor, em que aquela constatação de que o sonho do amor ideal está limitado pela vida toma corpo no clipe que não faz sentido, no limite entre a bossa-nova que idealizava o amor e o rock que canta os exageros do puro desfrute carnal. Talvez seja essa a grande contribuição de Cazuza, poeta em cuja obra o amor, grande lugar-comum da arte, ganha um novo significado, porque dialoga com a tradição do passado e com as relações humanas, as maravilhas e as mazelas do nosso tempo.

Talvez admiremos e invejemos Cazuza porque não tivemos a coragem de morder a vida com todos os dentes, como ele fez. Ao ouvir as suas canções, percebemos que o amor ideal não existe. Deixemos de lado, então, as idealizações a respeito dos nossos amores e da vida de Cazuza, para admirar-lhe a obra, que talvez nos ensine a amar e a viver “o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”.
No vídeo, um especial do Showlivre sobre Cazuza:


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