Na última edição do Pé na Porta, Clemente cobriu o lançamento do Almanaque do Rock, escrito por Kid Vinil, que já comprei, já li e recomendo a todos – especialmente os trechos a respeito do rock nacional. A erudição roqueira e a objetividade do texto, sem perda da densidade, já fazem dele bibliografia básica de qualquer fã de rock. É interessante notar, entretanto, que nas entrevistas com o autor e com o pessoal que encontrou no evento de lançamento do livro, Clemente insistiu numa frase: a história do rock brasileiro já foi feita, mas não foi escrita. Concordo plenamente. É que o texto de Kid Vinil, como todo almanaque, apesar de amplo e extremamente bem feito, tem a finalidade de apresentar sumariamente dados fundamentais a respeito do rock; falta no nosso mercado editorial uma obra de teor mais analítico do que esse, de talhe mais enciclopédico. Nem penso em me arrogar da tarefa, que exigirá pesquisa extensa e exaustiva, além de um conhecimento abrangente que não tenho, mas sugiro a seguir, para futuros autores corajosos – utilizando-me de contribuições da crítica literária – alguns pontos que, parece-me, não podem ser deixados de lado.
Antonio Candido, um dos estudiosos mais importantes da nossa literatura, afirma, de modo geral, que obras de escritores como Gregório de Matos Guerra, no distante século XVII, são o que ele chama de manifestações literárias. Sintetizando bastante, trata-se de textos que podem até alcançar bastante qualidade, mas que ainda têm como referencial a produção literária estrangeira. Para esse especialista, só temos literatura brasileira quando, em vez de produzirem por aqui obras de quilate e caráter estrangeiro, nossos escritores têm por referência outros escritores nacionais. É nesse momento que a tradição literária se forma, com autores escrevendo obras cujos temas, imagens e língua alcançam alguma repercussão no nosso público, sensibilizando-o, bem ou mal, porque, de alguma maneira, aguçam-lhe as impressões a respeito do próprio país.
De modo geral, pensando na história do rock brasileiro, acontece o mesmo: as primeiras manifestações do gênero por aqui não são quase nada além de versões das canções estrangeiras em português. Não é que não haja valor nessas manifestações: elas ganham importância pelo ineditismo, por apresentar ao público brasileiro um gênero jovem, que explodia nos Estados Unidos e na Europa. No Brasil, nos momentos iniciais, repete-se o que se faz fora, até que nossos grandes nomes estourem: na interpretação, por mais que doa à maioria dos roqueiros, a voz de Roberto Carlos e suas composições com Erasmo; na sonoridade eletrificada e até na invenção de instrumentos, os Mutantes, sobretudo na fase em que estavam próximos dos tropicalistas; no universo feminino, porque sem mulheres bonitas, inteligentes e rebeldes não se faz rock and roll, Rita Lee; no diálogo dos gêneros e das letras mais populares do Brasil com as ondas de ocultismo, paz-e-amor, demonologia e afins que vinham de fora, Raul Seixas. Parece-me que são essas as principais matrizes do nosso rock; gostemos delas ou não, é preciso passar por elas para entender o que se faz de rock no Brasil hoje. São esses, de formas diferentes, os nomes que dão tonalidade brasileira ao gênero estrangeiro.
Mas é só na década de oitenta que teremos o verdadeiro rock nacional, não porque esse momento seja mais especial do que outros, mas porque, fosse pela Bossa Nova, pelo Tropicalismo ou pela MPB engajada, já tinha havido por aqui algumas produções roqueiras – ou a rejeição a elas – para reverenciar ou para negar. O leitor deve notar que tentei evitar juízos de valor associados ao meu gosto ou à minha história pessoal. Quem me lê as colunas do Showlivre sabe que descobri o rock na década de oitenta; nem por isso superestimo aqueles anos. Mas me parece razoável a análise de que os primeiros que tinham um passado com que dialogar eram os roqueiros brasileiros da década de oitenta. Roberto, Erasmo, Mutantes, Rita, Raul: todos eles não viam, no passado, rock feito por aqui e, ainda que o vissem, ele era pouco mais do que uma reprodução do que se criava no exterior; coube a eles viver as experiências que devem ser relatadas nas primeiras páginas da história do nosso rock.
Além disso, também é preciso perceber que o rock brasileiro talvez seja um capítulo – longo, cheio de histórias dramáticas e divertidas, com lances de tragédia e de narrativa épica, mas ainda só um capítulo – da história da canção brasileira. É duro de admitir, mas se tentarmos observar as canções do rock nacional de oitenta com algum distanciamento, perceberemos que muito da força das composições da época vem da rejeição aos chamados “monstros sagrados” da MPB dos sessentas e setentas. Se pensarmos “de dentro para fora”, o rock foi o gênero que renovou a canção popular brasileira, num mercado saturado de amélias, banquinhos, violões, barquinhos, ritas-que-levam-sorrisos, odaras, rios-de-janeiros-que-continuam-lindos, cálices, bêbados e equilibristas. Os fãs de MPB não me torçam o nariz: também gosto dos monstros sagrados, mas é fato que a sonoridade deles já não respondia às demandas do mercado jovem na década de oitenta. A relação MPB-Rock Nacional não é de desigualdade, mas é de troca: para afirmarem-se como músicos brasileiros, os roqueiros precisavam rejeitar, ao menos inicialmente, o passado que lhes dizia pouco; os mais velhos, por sua vez, tiveram de se mexer, rever as próprias obras e verificar se ainda eram legítimos os temas e as sonoridades que os consagraram. Lembremos que Lobão rejeitava, há exatos vinte anos, a categoria “Pop Rock” no Prêmio Sharp de Música, reivindicando sempre um justíssimo lugar ao sol na apertada (ao menos para os roqueiros) praia da canção brasileira – que teve de ser invadida. E também façamos justiça à tradição de nossa canção: independentemente de gostarmos deles ou não, de preferirmos as obras mais antigas ou mais recentes, algo que Caetano e Gil sabem fazer muito bem é oxigenar as próprias criações; ao mesmo tempo, de todas as canções das décadas de 60 e 70, algumas das que mais se mantêm mais vivas são as de Chico Buarque, exatamente porque pertencem ao grupo das obras-primas, que não envelheceram com a redemocratização, o fim da ditadura e da censura.
As demandas de mercado, aliás, nos conduzem à inversão da perspectiva: observando, agora, de fora para dentro, sabemos que o rock é um gênero intimamente associado a um dos mais poderosos setores da indústria cultural – a indústria fonográfica, que está cambaleante, mas está longe de ir à lona. E, nesse sentido, com a finalidade de maximização dos lucros, o rock é um gênero que sempre esteve aberto a interferências de outros – especialmente os regionais, estranhos aos Estados Unidos e à Inglaterra, suas nações-mães. Uma avaliação da produção roqueira nas nações periféricas do capitalismo possivelmente levará à constatação de que, nelas, o rock se amalgama às manifestações musicais locais. No Brasil, a Tropicália já fazia isso nos festivais da canção: guitarras pesadas, Carmem Miranda e Jovem Guarda viviam em harmonia nas composições de Caetano, Gil, Mutantes e Rogério Duprat; Raul também se aproximou do universo brega desde muito cedo, pressagiando o Wander Wildner mais recente. Na década de oitenta, vivemos um aparente boom de rock “puro”, do ponto de vista da sonoridade; não nos esqueçamos, contudo, de que os Paralamas do Sucesso namoravam os ritmos caribenhos desde o início da carreira; Cazuza flertava tanto com a Bossa Nova e a MPB que abandonou o Barão Vermelho (quando este alçava vôos altíssimos) para imortalizar-se com canções como “Codinome Beija Flor”; a Legião Urbana, principalmente a partir de As Quatro Estações, foi moderando as canções pesadas, que, aliás, sempre estiverem ombro-a-ombro com as mais leves, como “Índios”, “Angra dos Reis” e até “Faroeste Caboclo”; Renato Russo, especialmente, encontrou no repertório italiano espaço para dar vazão a um universo passional que não existia, nem poderia existir, no rock. Até a banda brasileira que mais se aproximava do conceito americanófilo de “megabanda” tinha, no repertório do show, Secos e Molhados e Caetano Veloso: refiro-me ao RPM ao vivo, com “Flores Astrais” e “London, London”.
Um dos momentos mais férteis no que diz respeito às interferências regionais no rock é, sem dúvida, a década de 90, com o Chico Science e Nação Zumbi: Da lama ao caos é das grandes obras-primas da música brasileira – e não o seria se não fossem os elementos de rock que há ali. Roots do Sepultura é outra. Aliás, o Sepultura merece análise à parte – afinal faz rock brasileiro em inglês, afirmação que deixo para explicar outro dia, além de, nos dois últimos trabalhos, investigar o que há de rock em Dante Alighieri e Anthony Burgess. Sucessivamente, nos últimos tempos, as sonoridades e culturas regionais vêm assomando por meio do rock: os Los Porongas vêm do Acre; o Madame Saatan, de Belém do Pará; até o Ludovic tem como cenário para os monólogos dialogados de Jair uma São Paulo diferente, obscura, desconhecida.
Finalmente, apontando para a continuidade desta reflexão, o grande desafio de escrever um almanaque é fazer as escolhas do que ficará de fora. Kid Vinil acertou na mosca ao registrar bandas brasileiras desconhecidas do grande público, seja porque seus integrantes, depois, acabaram em outras bandas de maior alcance, seja porque, mesmo em escala reduzida, tiveram influência na formação do público de rock. Formação do público, composições em língua portuguesa, diferentes gêneros do rock brasileiro, importância dos canais de divulgação, suposta decadência das grandes gravadoras: são esses alguns assuntos que merecerão atenção em colunas futuras, que seguirão tentando contribuir para que se escreva uma história do rock brasileiro.
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