sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

As lições de André Midani

Um espectro tem rondado, há muito tempo, a canção brasileira: é a onipresença de André Midani. Música, ídolos e poder – do vinil ao download, lançado recentemente pela Editora Nova Fronteira, é dos livros essenciais para qualquer apaixonado por música brasileira; nele, em linguagem das mais simples, sem perder profundidade, o famoso executivo de algumas das maiores gravadoras do Brasil e do mundo conta em primeiríssima pessoa as experiências por que passou – do desembarque das tropas aliadas na França, no final da Segunda Guerra Mundial, à organização do Ano do Brasil no mesmo país, em 2005, passando por momentos relevantes da canção brasileira e latino-americana nos últimos cinqüenta anos. Ao final do texto, fiquei com a impressão de que acabava de ler uma obra de ficção, tal era a riqueza e a densidade das experiências relatadas por Midani.

Há figuras na indústria fonográfica que costumam ser demonizadas, sobretudo a dos executivos das grandes gravadoras. André Midani é certamente uma exceção nesse universo – homem de espírito sensível e libertário, tinha uma capacidade única de dar voz e ouvidos aos músicos no universo corporativo. Muitos deles não tinham nem podiam ter a visão ampla do mercado de música no Brasil – daí a importância do relato e das ações de Midani. Atribui-se a ele, por exemplo, uma frase polêmica, em plenos anos 70 – a de que o futuro da música brasileira estava no rock, o que lhe rendeu um “pito” de Vinicius de Morais, relatado no livro. A história demonstrou que Midani estava certo – e o mercado da canção brasileira, de fato, na década de oitenta, virou de cabeça para baixo graças àquele gênero.

Não são poucas as passagens do texto, em que esse natural da Síria, radicado na França – mas que se considera um “vira-lata” como todos os brasileiros – demonstra uma capacidade de análise que parece faltar a muitos de nós. Para Midani, por exemplo, a estratégia de investir apenas nos hits e não nos artistas é um dos equívocos que levou à crise atual da indústria fonográfica. Em outras palavras: investir no artista é dar-lhe liberdade de criação, de modo que construa uma carreira e, conseqüentemente, um público fiel, que renderá os tão almejados “lucros aos acionistas” e, mais importante, o meio de vida para o músico, sem que este precise fazer concessões estéticas absurdas que lhe comprometam a integridade artística.


O leitor imaginará que, na teoria, o que está escrito acima é muito bonito, mas que não tem aplicabilidade prática – e é aí que se equivoca. Para Midani, o fracasso retumbante de Araçá Azul, o mais difícil disco de Caetano Veloso (“quatrocentas mil cópias colocadas nas lojas e quatrocentos mil discos espetacularmente devolvidos”), é parte do processo criativo que resulta no enorme êxito de Jóia, do mesmo Caetano, mais tarde. Em outras palavras: o processo criativo é, antes de tudo, processo – afinal, nem todos os artistas do mundo estréiam com obras-primas e sucessos de venda. Na nossa literatura, o exemplo mais flagrante talvez seja o de Machado de Assis, cujos quatro primeiros romances podem ser considerados laboratórios, experiências para que se alcance a maturidade das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Rigorosamente na mesma medida, adoro o Sepultura de Morbid Visions, mas convenhamos: ele é apenas uma imagem bastante imperfeita do que surgiria no Chaos AD e nos outros trabalhos. Mas este disco não existiria sem aquele. Então aprendamos com o mestre: a criação de arte também é processo – o problema é que a lógica do mercado, afoita pelo próximo sucesso, afoga a maioria das possibilidades de evolução dos artistas. Se não estourarem no primeiro trabalho, estão fora; se estouraram nos primeiros dois ou três, têm poucas chances de brilhar de novo – e estão fora também, porque o “mercado” exige algo novo. Ora, leitor, interrompamos essa lógica cruel – o “mercado” somos nós: paremos um pouco de querer ouvir a última canção gravada no planeta – seja ela ligada à cambaleante, mas ainda milionária, indústria fonográfica, ou ao mais independente dos universos – e ouçamos mais de uma vez as canções que aguçaram-nos a sensibilidade.

Midani demonstra que é mesmo um visionário, tendo proposto, em 1975, uma espécie de modelo do viria a ser a indústria independente de música: ao perceber que a chegada de gravadoras estrangeiras ameaçava a existência da Phonogram brasileira, que dirigia, Midani tentou preservar seus grandes nomes apresentando-lhes contratos em que eles “passariam a ser proprietários de seus discos futuros, transformando-se em pequenas gravadoras independentes. Assim, a partir daquele momento construiriam paulatinamente um acervo importante de sua inteira propriedade. Em troca, a Phonogram garantia a permanência deles, por meio de um contrato de distribuição de longo período”. Desse modo, segundo ele, os artistas poderiam, dentro de alguns anos, ser os donos de boa parte dos próprios masters. Mas lamenta que aqueles com quem estabeleceu o tal contrato tenham vendido, dois ou três anos depois, os masters de volta para as gravadoras e retornado ao modelo clássico de contrato.

Uma outra proposta revolucionária foi a abertura de uma companhia de discos completamente brasileira cuja composição de capital fosse a seguinte: 40% de investidores; 35% de artistas que assinassem com a gravadora; 25% do próprio André Midani. Não é arriscado dizer que, com um bom acordo de acionistas, a companhia teria tudo para dar certo – mas não deu porque os eventuais investidores não acreditavam que seria confiável aplicar capital numa empresa de discos cujo retorno estaria “à mercê da criatividade de artistas reputados por sua loucura e imprevisibilidade”. Aprendamos ainda mais com o mestre: transformar o artista em proprietário de sua obra e da companhia, além de remunerá-lo de forma mais justa, fugindo em alguma medida à mais-valia das majors, aproximaria o músico do universo administrativo – o que poderia, também, sem dúvida, ser uma experiência interessante. Pense o leitor no seguinte: não é difícil dizer que as grandes companhias tolhem o processo criativo dos artistas – e elas tolhem mesmo, porque têm os olhos apenas nos lucros; transformar os artistas em sócios seria, também, de certa forma co-responsabilizá-los por eventuais perdas financeiras. Seria, no mínimo, didático e salutar para todos. Estariam (estarão) os músicos prontos para essa responsabilidade?

Tenho para mim que sim: o florescimento da indústria independente, até onde posso enxergar, tem fomentado entre as novas bandas – e as mais anciãs também – uma consciência maior a respeito do mercado de música e dos próprios patrimônios musicais, o que era quase impossível no passado. Quando capitaneou a WEA no Brasil, o mesmo Midani chegou a propor que um representante dos músicos fizesse parte do conselho diretivo da empresa, outra idéia que não deu certo porque o eleito dos músicos – Chico Anysio! – não se interessou em assumir o posto. Trapalhadas – dos próprios músicos, que não se organizaram para eleger alguém que os representasse de fato – à parte, fica definitivamente registrada aqui a capacidade inovadora de André Midani em levar às mãos dos artistas o poder de decisão. Ficou aí perdida uma chance preciosa, que poderia ter contribuído, e muito, para antecipar a independência dos nossos músicos.

A leitura da autobiografia de André Midani é indispensável para a reflexão a respeito dos rumos que a canção brasileira tomou desde a década de cinqüenta. Mas é ainda mais importante porque deixa evidente que não basta aos profissionais da canção observá-la como produto – é preciso, antes de tudo, pensá-la e respeitá-la como obra de arte, exatamente como fez André Midani.

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