Talvez uma coluna a respeito de Wander Wildner tenha de ser escrita em duas partes: uma primeira, indissoluvelmente associada aos Replicantes, histórica banda punk gaúcha dos anos 80; a outra, a respeito dos trabalhos mais recentes do compositor, em que influências de toda ordem se amalgamam, do brega aos ritmos latinos, com letras em espanhol e em português. Uma análise rápida – e, na minha forma de ver, equivocada – desses dois momentos poderia levar à conclusão apressada de que a obra de Wildner, e até ele próprio, “evoluíram” da revolta adolescente do movimento punk à maturidade da fase atual, em que as canções estão revestidas de outros gêneros. Os fãs mais fiéis dos Replicantes, por outro lado, talvez sintam que a obra não tenha evoluído, mas regredido, abandonando a pretensa “pureza” do punk rock.
Rejeito as duas hipóteses: é certo que o trabalho de Wander Wildner mudou – e ainda bem. Na hoje tão celebrada década de oitenta, as rádios brasileiras foram saturadas com apenas um gênero, o rock, e, por mais que eu goste dele, imagino que a diversidade cultural de nosso país acabaria empobrecida se ele mantivesse a hegemonia por muito mais tempo. Nada mais natural, portanto, que nossos roqueiros, depois do apogeu, da experimentação e até da exageração do gênero, singrassem outros mares. Não há aí, entretanto, “evolução” – no sentido de “melhora”; o que há é um processo natural, sobretudo no universo brasileiro e múltiplo da canção. Me parece, ao contrário, que, apesar das diferenças marcantes entre uma fase e outra de Wander Wildner, há algo que permanece: o inconformismo, a liberdade de pensamento, que critica a tudo e a todos, a rejeição aos “casos de sucesso”, aos modelos e produtos da indústria cultural.
Lembremo-nos, por exemplo, de “Surfista Calhorda” (no link ao lado, executada na Virada Cultural, pelos Inocentes e por Wander Wildner) talvez a canção mais emblemática dos Replicantes. Ali, repudiava-se o surfista do título, espécime repugnante das elites brasileiras mais desprezíveis, daqueles que vivem de heranças milionárias, não produzem nem criam nada, e só desfilam com a “Prancha importada”, o “Corpo de atleta e o rosto de baby Johnson” para impressionar as menininhas. Em suma: a versão oitentista de uma celebridade, cuja felicidade e relevância na “alta sociedade” depende da exposição nas colunas sociais, sempre com o rostinho bonito, maquiado de uma moda qualquer, desde que seja a última. Naquela época, o projeto era fazer revolução por meio da música: ainda se respiravam os ares das Diretas Já, do processo de redemocratização, do fim da censura. Havia, em suma, esperança de que o Brasil podia mudar, daí a postura agressiva das canções. O disco de que mais gosto, as Histórias de sexo e violência, trazia uma carga de questionamento que assustará a maior parte das bandas de hoje, mais preocupadas com as próprias subjetividades do que com o mundo que as cerca; é esse o disco de “Chernobyl” (dos atualíssimos versos “Chernobyl não foi suficiente / Será preciso um acidente em Angra” e “Alguns setores civis e militares / Já defendem a bomba atômica / Estão explorando a Serra do Cachimbo / E acabando com a Amazônia”), de “Tom e Jerry” (“Capitalismo e comunismo são disfarces do fascismo”, “Moralismo e censura são as facas do inimigo”, “Consumismo e egoísmo são as drogas do sistema” com o recado final “Seja punk mas não seja burro”) e, principalmente, de “Sandina”.
“Sandina”, recentemente regravada pelos Inocentes, é capítulo especial na história dos Replicantes, porque era uma canção de amor (não a única, mas era a mais marcante) em meio a todo o mundo cão descrito nas Histórias de sexo e violência. Ali, o eu que canta chorava a ausência de uma garota que o havia abandonado para lutar na Revolução Sandinista, de caráter popular e socialista, na Nicarágua. Era uma visão que nem a MPB de protesto tivera: no engajamento revolucionário, há um preço afetivo a pagar, que expandia o universo de “Sandina” para além das palavras de ordem, por meio dos versos “Todo mundo vai embora / Todo mundo tem sua hora”.
Esses dois versos, muito próximos dos ditos populares, parecem-me prenúncio do que ocorrerá com a obra recente de Wildner, em que, nas letras, as frases do senso-comum, do cotidiano, se misturam a versos irônicos e escatológicos, sempre na mesma chave de “Surfista Calhorda”, mas sem a agressividade do refrão; no plano musical, ao tradicional baixo-guitarra-bateria sujos do punk rock associam-se outros instrumentos, numa riqueza e até exagero de arranjos que remetem ao universo brega. Em palavras muito simples: a ironia continua existindo – afinal, que dizer dos versos “Dentes bonitos me dizem pra ter / um sorriso colgate pra sair com você /Mas eu pergunto até quando você não vai ver, / que a verdade está nesses dentes mordendo você / Não vou gastar meu dinheiro no dentista pra te agradar, / não vou colocar dentadura postiça só pra te conquistar”? –, mas a agressividade, que era trazida principalmente pela dicção punk, está amenizada, no melhor sentido que essa palavra pode ter, pelo ritmo, e principalmente pelos efeitos de humor das letras. O amargor deixado pela Sandina do passado – cujo nome sempre me faz lembrar sandia, feminino de sandeu, que significa parvo, tolo, insensato – dá lugar ao amor pueril à Juliana da canção “O sol que me ilumina”: ela é educadora infantil, atriz de teatro, cujas palavras levam o eu que canta “ao paraíso”. O sorriso dela é o sol que o ilumina, num refrão de linguagem extremamente simples, popular; e nem essa canção escapa à acidez do humor wildneriano: ele pede à Juliana que lhe conte sobre Freud, “aquele velho louco e cheirador”.
A opção pelo ritmo brega – que poderia ofender os roqueiros mais puristas – é a essência e o ponto alto da obra recente de Wildner. Primeiramente, porque remete à assimilação do rock à canção popular brasileira. Luiz Tatit, no livro O século da canção, explica que, na década de oitenta, o rock brasileiro tomou de assalto as rádios do país; nada mais natural que, num país de diversidade musical como o nosso, ocorresse a distensão desse processo – e uma conseqüente “breguização” do nosso rock, deixando claro desde já que esse termo não é pejorativo, só aponta para um processo, bem grosso modo, de suavização (Tatit chama de passionalização, mas não vou explicar os termos técnicos aqui) do gênero, permeável que ele é a características regionais. Ponto para Wildner, cuja obra é uma das mais acertadas nesse sentido.
Mas o grande mérito de associar o rock aos ritmos considerados bregas foi declarado pelo próprio Wildner: ao fazê-lo, o compositor traz um aspecto rigorosamente popular brasileiro a esse gênero internacional. É exatamente o que ocorre na literatura considerada culta ou erudita que, a partir do Modernismo, passa a se valer dos registros populares para tornar-se mais autenticamente brasileira. São as influências facilmente observáveis dos vocábulos, dos ditos, dos causos – no caso da canção, dos ritmos – rigorosamente populares, cujos exemplos mais fáceis são as influências dos autos de natal em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, das narrativas orais mineiras em toda a obra de Guimarães Rosa, do circo em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Já disse em colunas anteriores que a literatura popular em versos, a literatura de cordel, na medida em que foge aos moldes da arte de origem burguesa, pode ser considerada foco de resistência aos moldes impostos pela indústria cultural; não será muito diferente do que ocorre no trabalho atual de Wander Wildner, como ele próprio afirmou no último Estúdio Showlivre: por meio da associação do brega ao rock, alcança-se uma canção verdadeiramente brasileira, contrariando o falso bom gosto de nossa elite e de nossa classe média, mais afeitas aos últimos sucessos limpinhos e bem-comportados que a indústria fonográfica lhes oferece.
Na terça-feira, Wander Wildner afirmou que desistiu do sonho de mudar o mundo, malogrado já na década de oitenta, e que agora tem feito música pra se divertir. O leitor não se deve deixar enganar por mais essa ironia wildenriana: o rock brega que esse compositor tem produzido não só consagra definitivamente a associação do rock à cultura popular brasileira como também lhe reforça o caráter de resistência ao sistema – exatamente o mesmo projeto revolucionário do passado, nos Replicantes, só que agora feito com elementos rigorosamente nacionais, que, sem diminuir a intensidade da crítica, revestem-na de uma mordacidade ainda maior, disfarçada de bom humor.
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