quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Pequena poética dos Inocentes e o fantasma de Mário de Andrade

Assistir à gravação do DVD dos Inocentes, no Centro Cultural São Paulo, foi experiência única. Poucos espaços são mais adequados do que aquele para uma apresentação da maior banda punk do país. Destinado à promoção da diversidade cultural, o Centro Vergueiro abriga as mais diferentes manifestações artísticas brasileiras, deixando de lado a preferência que se costuma dar à cultura dominante, elitizada. Lá se pode encontrar, por exemplo, uma exposição permanente a respeito das pesquisas de Mário de Andrade, que investigou a fundo nossa canção popular. Gostei de ouvir “Pânico em SP” ao lado do fantasma desse escritor, que vagava por ali, entre o público, prestando atenção à letra dessa canção, estranhando sua crueza e lamentando a violência relatada na letra. Mário de Andrade adorava a cidade de São Paulo, e seu fantasma deve ter se assustado com a visão, a um só tempo, apocalíptica e profética de Clemente.

Aliás, o letrista dos Inocentes, de certo modo, se insere na tradição dos poetas e músicos que homenageiam a capital paulista. Só que, na obra da banda, essa homenagem ocorre às avessas: São Paulo é cidade cruel cujas ruas estão tomadas por bombeiros, exército e policiais, todos prontos para atirar na população amedrontada – sem que ninguém saiba o que está acontecendo, todos vítimas da alienação engrendrada pelos meios de comunicação, como veremos adiante. Fica a impressão, em primeiro lugar, de que a cidade parece ter vida própria, isto é, de que a multidão acaba por compor um ser único, irracional, assustador. Uma análise mais detida da canção, entretanto, pode levar a outras possibilidades.

Perceba, por exemplo, que o desespero em que se vê a população foi planejado pelos meios de comunicação: “as rádios avisaram que era pra correr”; no jornal, no rádio e na TV, “estava estampado o rosto de medo da população”. Ninguém sabe por que está correndo – nem os policiais sabem o que está acontecendo –, mas todos correm, apavorados devido ao sensacionalismo da imprensa. Em outra canção, “Rotina”, Clemente já avisava que a TV nos diz o que fazer, do que gostar e como viver. E a conseqüência é que, depois de uma dose cavalar de lixo televisivo, chega a hora de nos desligarmos, como se fôssemos mera extensão daquela máquina de reproduzir bobagem. Dá ânsia, dá nojo, dá raiva, dá ódio, mas isso é tudo que ela pode dar, aludindo ao duplo sentido de “Nojo”, mais recente.

Gosto de dois elementos primordiais da obra dos Inocentes que estão sintetizados em “Pânico em SP”: o primeiro é que, embora saibamos que a confusão toda foi causada pelos meios de comunicação, não sabemos exatamente quem foi que soou esse alarme. E a essa pergunta junta-se outra, segundo elemento fundamental: o que é que estava acontecendo, afinal? Essas duas questões – parece-me – provocam o ouvinte a ficar analisando a letra da canção à cata de evidências que as respondam. E essa provocação é característica marcante de um gênero de rock cujas finalidades são, dentre outras, a eliminação da alienação, a conscientização do ouvinte e, finalmente, o questionamento da cultura dominante. Em palavras bem simples: melhor uma obra fundada em perguntas do que em certezas. Por que foi que “Ele disse não”? Quem são os verdadeiros agentes escondidos por trás do alarmismo dos meios de comunicação?
À cultura dominante, aliás, se opõe, de certa forma, a cultura popular, exatamente aquela pesquisada por Mário de Andrade e exposta no Centro Cultural. Digo “de certa forma” porque os estudiosos de literatura de cordel, por exemplo, acreditam que uma das características marcantes desse tipo de texto é a ausência da noção de autoria. Para facilitar a compreensão: nos textos tradicionais de cordel, repetem-se, ao longo dos séculos, temas, formas, métricas, versos quase inteiros, estruturas frasais consagradas pelos primeiros poetas e reproduzidas pelos que os seguiram. Antes que o leitor imagine que se trata de plágio puro, que dispensa talento do artista, lembre-se de que cada autor, ao longo do tempo, também contribui de maneira extremamente original, fazendo pequenas alterações, mudanças e supressões que vão sendo assimiladas. Trata-se, em suma, de texto radicalmente coletivo, quase único, embora escrito por diferentes autores ao longo do tempo, que pertence a todos, espécie de repertório popular que o versejador pode utilizar à vontade para dar sua contribuição: ali, de certa forma, quem fala, não é só um autor, mas o “povo”.

Muitos estudiosos entendem, portanto, que a cultura popular combate a cultura dominante não porque proteste deliberadamente contra ela, mas porque, em sua estrutura está representada essa cultura coletiva, oriunda das classes populares. Imagino que o fantasma de Mário de Andrade, ouvindo os Inocentes, terá suspeitado que se encontrava, ali, uma nova manifestação popular, de origem urbana.

Acho que não é equivocada a hipótese de que os punks alimentaram, sobretudo em São Paulo, uma espécie singular de cultura popular urbana – talvez inédita. Rejeitando todas as formas burguesas de arte e de comportamento, e utilizando-se da agressividade primordial do rock, os punks criaram uma forma de expressão extremamente violenta que ganhou cor especial no Brasil. Da mesma forma, como vimos, manifestações populares de literatura – como a literatura de cordel – fazem viver pela sua perpetuidade clamores autenticamente populares. Tenho a impressão de que no punk ocorre processo semelhante. Mais: a obra dos Inocentes utiliza-se dos canais da indústria fonográfica para resistir a ela, implodi-la, para questionar-lhe as bases, para fazer o ouvinte pensar sobre quem é que está por trás do sensacionalismo gratuito ou das certezas emburrecedoras dos meios de comunicação.

É evidente que a maioria das letras dos Inocentes são assinadas pelo Clemente e que seu protesto ocorre, em certo sentido, de forma diferente daquele que se observa na cultura popular, afinal ele é escancarado, isto é, nas letras parece haver o firme propósito de conscientização do ouvinte; inclua-se aí a urbanidade, as ruas, o cotidiano violento das cidades. Mas o aspecto radicalmente coletivo parece irmanar muitas das canções dos Inocentes à cultura popular.

O fantasma de Mário de Andrade deve ter se assustado com o volume do som, com as performances dos músicos, com a invasão do palco quando “Pânico em SP” foi executada. Tudo pode ter-lhe parecido extremamente violento e instintivo, irracional, como as reações de desespero da multidão urbana apavorada pelo som das sirenes e pelo aviso das rádios. Mas também deve ter percebido, logo depois, que a raiva pode salvar e que, no exato momento da invasão do palco, público e banda eram um só, como se esta fosse apenas porta-voz, amplificadora da cultura, das aflições e dos anseios daquele. Como se a poética dos Inocentes fosse a poética de seu próprio público, de autoria radicalmente popular, com pouco ou quase nada a perder, longe da irracionalidade e da alienação da multidão apavorada.

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