quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Ludovic: muitas vozes e um idioma morto

Há uns poucos meses, o Clemente me deu assunto de bandeja para esta coluna. No Estúdio Showlivre do Ludovic, durante a entrevista, ele afirmou que as letras da banda “funcionavam sozinhas, como se fossem poemas”. Concordo em parte: não há dúvida de que aquelas letras têm uma puta qualidade. Mas o próprio poeta e vocalista Jair, no mesmo programa, disse ao Clemente que discordava, isto é, que havia, sim, firme propósito de que aqueles textos integrassem canções e que havia no trabalho da banda larga preocupação com a parte musical. Concordo totalmente.

Os ouvintes de Idioma Morto, segundo CD do Ludovic, hão de se impressionar com dois elementos fundamentais do disco: o primeiro deles é um fenômeno que Bakhtin, estudioso russo da literatura, chama de polifonia; o outro é a concepção de Idioma Morto como obra que compõe um todo coerente – daí eu chamá-lo de disco, palavra fora de moda, mas que me parece adequada para fazer referência a trabalhos cancionais de forte coerência interna. A indústria fonográfica tem feito de tudo para acabar com esse “produto”, mas é evidente que ele está vivo e saudável no universo das bandas independentes.

Talvez os especialistas em Bakhtin me coloquem na fogueira, mas creio ser possível fazer a seguinte associação: segundo esse estudioso, nos romances de Dostoievsky, diferentes personagens se manifestam – cada uma com as respectivas linguagens, repertórios e pontos de vista – sob a organização do autor, que, literalmente, dá voz a cada uma delas; ora, também é verdade que isso ocorre em Idioma Morto, por exemplo – mas não só – na canção “Atrofiando/Recém-convertido/Ex-futuro diplomata”. Já o título (ou serão três títulos?) é sugestivo: cada uma das expressões contém um ponto de vista a respeito do eu que canta. Um bom chute é que “Atrofiando” represente a visão que alguém de fora, um estranho, teria sobre aquele eu; “Recém-convertido” é expressão que se aproxima mais da opinião do próprio eu da canção, que conta os estados de sofrimento que experimentou depois que se rendeu à lógica do mercado de trabalho. Finalmente, “Ex-futuro diplomata” parece aproximar-se da perspectiva da mãe do eu, que se orgulhava dele e decepcionou-se.

A força da canção está exatamente em combinar essas três vozes, apresentando ao ouvinte uma espécie de holograma a respeito da situação em que o eu que canta está envolvido: na perspectiva dele, a conversão ao mercado de trabalho é recente e dolorida, por isso ele está “distribuindo currículos em branco”, mas, sobretudo, “clamando por piedade”, verso gritado em agudo, que marca, literalmente, a consciência do eu que se vê vendido ao sistema. A segunda – bastante cruel – é a da mãe, marcada noutro verso também urrado em agudo – “Você nunca me enganou – saia por onde entrou” – em que se manifesta a decepção com o filho, que abandonou o prestígio e o status de uma eventual carreira diplomática. A terceira voz, a de um observador externo, se manifesta principalmente no verso “(ele é sempre quieto assim?)”, marcando o olhar de alguém que desconhece o “rancor” em que está “afogado” o eu que canta. A última estrofe – “Lamento informar, / Mas seu dublê de messias / seu tão prestativo cão guia / perdeu o ar permissivo e acolhedor” – anuncia o rompimento com a mãe, que, por sua vez, lhe responde, mais uma vez: “saia por onde entrou”. Trata-se de letra complexa – daí a impressão de Clemente – em que observamos um fragmento de narrativa sob três ângulos diferentes: o do eu aflito, o da mãe frustrada e o de um estranho, que não entende o atrito entre os dois primeiros.

Mas o mérito não pára por aí: ouvintes mais atentos perceberão que a última canção do disco amarra-se à primeira. Em “Trégua”, ressurge a figura da mãe: o feito heróico do eu que canta é render-se aos embalos maternais dessa “jovem viúva em prantos”, como que encerrando os conflitos relatados em “Atrofiando/Recém-convertido/Ex-futuro diplomata”. Diante de um júri, o eu que canta é insultado por uma outra voz, que diz ser ele “um orador limitado a um idioma morto”. É mais uma vez o observador externo – agora na forma de júri – que se manifesta: ele não pode entender a linguagem do eu que canta, por isso o idioma lhe parece morto.

Ciente de que, aos olhares de estranhos e da própria mãe, os dilemas e as crises que experimenta parecerão incompreensíveis, o eu que canta e escreve deu ao álbum o título Idioma Morto, como se quisesse, mais uma vez, gritar-nos ao ouvido a solidão e o rancor que sente. Esses estados perpassam todas as canções, conferindo coerência ao disco. As diferentes vozes que ali se manifestam parecem asseverar mais uma aflição do eu: ele conhece a perspectiva dos que o observam e as expectativas de seus parentes – ouça “Desova”, em que o pai e o eu são “irmãos siameses em vias de separação” –, mas o inverso não é verdadeiro. Daí a sensação de incompreensão expressa no título do trabalho.

Em palavras simples: os versos que nos mostram as diferentes vozes tendem ao agudo, efeito que só é possível na interpretação gravada pelo autor da canção. Se tivéssemos apenas os poemas, até poderíamos compreender a polifonia, mas perderíamos a força do recurso vocal recorrente no disco, que só reforça a sensação de isolamento expressa no conteúdo das letras e no título Idioma Morto.

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