Mas então alguns leitores dirão que “Lobão se vendeu”, que “a grana fala alto para todo mundo” ou que “todos têm seu preço”: todas frases feitas que estão à espera de uso indiscriminado, de modo a perpetuar um certo conservadorismo que me desagrada bastante. Já ouvi dizer que a moeda de troca de Lobão para topar a proposta que o fez aceitar a empreitada do Acústico foi a veiculação, nos grandes canais de distribuição, de outros álbuns. Não sei se isso é verdade, fico de confirmar, mas é fato que já consegui achar dois CDs dele nas grandes lojas virtuais – o que era impossível, antes. Mesmo que isso não tenha ocorrido, mesmo que Lobão tenha topado gravar o disco pela grana, pergunto ao leitor: esse será um critério justo para avaliar-lhe o valor da obra? Tenho a impressão de que não. Acredito piamente – e os que se arrogam de maior coerência hão de discordar com sangue nos olhos – que algumas obras preservam seu caráter de protesto, suas críticas aos setores mais conservadores de nossa sociedade, embora estejam, em alguma medida, inseridas na lógica da indústria cultural.
(Essa é a parte racional de minha personalidade falando; a menos racional dirá que as escolhas do Lobão dizem respeito a ele e a mais ninguém. Que mania é essa que a gente tem de tratar todos os artistas como se fossem celebridades fáceis, que vivem da promoção da própria imagem? Nem todos são assim. Cada um sabe bem o que faz e por que o faz. Analisemos a obra e não a vida deles!)
Não é fácil de demonstrar os raciocínios acima, com ou sem parênteses. Mas vou tentar. Em "Decadénce avec elégance", o título já me parece irônico por si só, em francês, tirando sarro daquelas pessoas que insistem em ser “chiques”, com um verniz de erudição européia, mas que são, na verdade, medíocres. E assim é exatamente a mocinha descrita na canção: para ela, a vida não tem sentido, “sempre em dia com o seu atraso”, sempre à cata da última moda. Já que ela troca o próprio destino por qualquer acaso, acabo concluindo que, em vez de conduzir os rumos da própria vida, ela se deixa levar por o que estiver “na crista da onda” ou o que for a bola da vez – expressão ironizada por Marcelo Nova quando esteve no Estúdio Showlivre.
Mas não pára por aí: a “musa” da canção recomenda ao eu que canta que “seja um bom rapaz, pratique algum esporte, tenha bons ideais”. “Que mal há nisso?” ralhará o leitor impaciente (o autor está mais mal humorado do que nunca!). Todo mal do mundo: que é ser “bom rapaz”? Praticar algum esporte para quê? Quais são os bons ideais? Parecem-me frases feitas que ocultam aquela incapacidade de conduzir a própria vida, como se a mocinha recomendasse ao “eu” o receituário de algum livro de auto-ajuda para alcançar o sucesso e a aceitação, o comportamento-padrão que lhe garante amigos-padrão e vida-padrão, mas que abomina a diferença – os supostos “bons ideais”, na lógica daquela gracinha de menina, costumam estar associados a conservadorismos elitistas (vide o francês do título), machistas, religiosos, ou à perversidade de viver exclusivamente da própria imagem, entre as celebridades fáceis que comentei acima. A força de "Décadence avec Élègance" está exatamente nos clichês de que se utiliza para mostrar a alienação dessa “musa” que entende que devemos “descansar em paz” se estivermos, mesmo, na iminência do fim do mundo.
Uma outra versão de garota medíocre – agora, muito abastada – está em "Blá, Blá, Blá... Eu te amo (Rádio Blá)", cuja versão, no Acústico, renova a obra de Lobão. Já sabemos, desde a década de oitenta, que a moça estava na “onda da paixão paranóica” e praticava sexo como jogo de azar. No lugar dos versos originais, da segunda estrofe, contudo, ouvimos que “Sua vida burguesa é uma merda / um roteiro de intrigas pra Fellini fumar / cercada de maus elementos, pessoas chatas, feias, bobas, burras / Ninguém pensaria que ela quer... fuder!”. Boa parte da paixão que a primeira versão da música exalava foi transmutada em crítica radical: o jovem Lobão encantava-se pelo verniz burguês da moça, que tinha amigos inúteis, mas que decidiu apaixonar-se – predominava o “eu te amo”; o Lobão maduro despreza a vida burguesa que ele imaginara poder ser assunto de literatura ou cinema (mas não é), escancara a estupidez do meio de que a moça fazia parte – “chato”, “feio”, “bobo” e “burro” são adjetivos quase infantis – e a desmascara: o que ela quer é fuder mesmo, sem paixão – na versão do Acústico, o palavrão é urrado, rasurando toda e qualquer hipótese de amor. Predomina, aqui, o blá, blá, blá do rádio, como se o eu que canta soubesse que aquela canção de amor se esvaziaria e seus escombros nos deixassem ver a mediocridade da menina.
É impressionante como Lobão consegue, nas duas canções acima, usar as frases feitas do cotidiano e atribuir-lhes novos sentidos. Ser chic, ser bom rapaz, praticar esportes e ter bons ideais são clichês do bom mocismo comportado, que não questiona nada e que, exatamente por isso, é o alvo da crítica. O blá, blá, blá do rádio – temperado com os palavrões e as pessoas chatas, feias e bobas – assumiu, no Acústico, novo sentido: serviu para mostrar ao ouvinte quem era, de fato, aquela cuja maior preocupação era relatar as próprias experiências sexuais – os tais “jogos de azar” – para as amigas.
Como os grandes poetas, Lobão apropria-se do que há de mais simples na língua de todo dia e transforma-o em poesia – esse era, aliás, um dos pontos fundamentais do projeto modernista de 22. Mais interessante é que a matéria-prima das letras que analisamos – os lugares-comuns – são o ponto de partida para fugir ao comportamento comum, isto é, as frases feitas ganham perspectiva crítica de que passam longe em seu uso diário. Essa perspectiva, por sua vez, escapa ao lugar-comum da indústria fonográfica, cujos grandes sucessos podem ser chamados de qualquer coisa, exceto questionamento e poesia. Ao expor, em suas canções, o abobalhamento da mocinha fútil, Lobão dá uma rasteira na indústria cultural, subvertendo-lhe os “bons” ideais e o blá, blá, blá.
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