sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

O fantasma de Padre José de Anchieta na Virada Cultural (ou as perspectivas da canção independente brasileira em estilo inspirado em Mário de Andrade)

Os leitores mais assíduos desta coluna hão de lembrar que me encontrei com o fantasma de Mário de Andrade, durante a gravação do DVD dos Inocentes. Foi experiência única: juro que vi aquele poeta e pesquisador da cultura popular brasileira, primeiramente, assustado com a barulheira das guitarras e o acotovelamento dos punks mais jovens; depois, já convencido de que o poeta que ali cantava e de que o público que ali berrava eram tão brasileiros quanto ele, deixou-se levar, cerrou os punhos e bradou Pânico em SP – só não digo que o fez “a plenos pulmões” porque o fantasma de Mário de Andrade não os tem, e, se os tivesse, não seriam plenos, desgastados que estariam do cigarro. Não disse a ninguém que o poeta estava ali – tive a impressão de que ele não queria ser reconhecido, nem queria roubar a cena dos Inocentes: ouviu o som, pulou e gritou bastante, mandou um beijo, de longe, para o Clemente, que acenou agradecendo, e foi-se embora, cotejar os resultados da pesquisa sobre música popular que fez com aquela forma tão explosiva de canção. Tive medo: somente eu teria visto o líder modernista no meio do êxtase do público? Era alucinação, ou eu o vira de fato?

Deixei pra lá essa história, que não sou de dar bola às coisas do outro mundo. Mas elas insistem em me seguir. Num sábado recente de calor infernal, pensei em dormir no início da noite, curtir meus cachorros, acordar cedinho no domingo e tentar levar uma vida normal; revirando na cama, meio acordado, meio dormindo, tive a impressão de tomar um cutucão áspero, como se alguém tivesse usado um longo graveto de madeira cheio de areia para acordar-me. Aceitei: era um sinal. E lá fui a um show do Ludovic, aberto pelo Madame Saatan, onde encontrei Diogo do Los Porongas e conheci o pessoal do Macaco Bong. Fosse quem fosse o ser que me tivesse acordado, por que teria me mandado ali? Tomei coragem e disse ao acreano, depois de umas cervejas, que o rock independente brasileiro tinha força para minar a pasteurização e a alienação engendrada pelas grandes gravadoras, para conscientizar e sensibilizar o público, para mudar o Brasil – talvez o mundo.

Mesmo cutucão na terça-feira: era dia de assistir ao Julia Car na choperia do Sesc Pompéia, com a participação do Clemente. Depois do show, aprendi com o mestre, a quem ofereci uns chopes: “A cena independente hoje é mais forte do jamais foi; o que falta é criar uma indústria independente”. Tomei os chopes e fui para casa.

No sábado, dia da Virada Cultural, quase dormindo, ouvi frases em tupi sussurrando-me ao ouvido; os cachorros latiram, sinal aziago, pulei assustado da cama: seria o fantasma do poeta modernista? Não dormia, não dormia, não dormia: vou pra Virada, ao menos divido a insônia com mais um milhão de pessoas. Acordei a mulher, pegamos o metrô. E foi no Pátio do Colégio, berço da cidade de São Paulo, que entendi tudo que acontecera comigo ao longo daquela semana.



Primeiro: foi lá que arrumei o que fazer ao longo de toda a semana seguinte – pesquisar as bandas instrumentais independentes que têm surgido e eu não conhecia. Assustei-me: o fantasma, ou o que quer que tenha me acordado ao longo da semana, poderia ser algum dos integrantes do Trilöbit, todos eles extraterrestres. E perguntei assim: estará o público pronto para bandas cujas canções não têm letra? Concluí que sim, já que muitos dos que estavam por ali vibravam com os alienígenas. E entendi da seguinte maneira: o que talvez os independentes ainda estejam descobrindo é como formar público – e perceba, leitor, que formar público é diferente de ganhar público. Na indústria fonográfica tradicional, as canções são produtos; o capital destinado à produção é investimento; a diversidade de gêneros (que no fundo repetem a mesma coisa) é mix de produtos; os ganhos auferidos ao final são lucro ou retorno sobre o investimento. Ora, já vem se delineando – espero que já venha se delineando – na música independente uma outra lógica: as canções ou músicas são obras de arte; a produção, de custos baixos e de qualidade, é sobretudo resultado de paixão; a diversidade é condição necessária, já que a pretensão não é fazer que o artista se torne produto consumível, mas que ele seja admirado pelas qualidades estéticas intrínsecas a sua obra; a grana obtida ao final é ganha-pão que dá vazão a mais criatividade. E essa é meio que uma síntese das coisas que eu tinha pensado no dia em que encontrei Diogo dos Los Porongas, que, não demorou muito, subiu no palco e bradou, para o público que se avolumava a olhos vistos e para todos os fantasmas que dormem na cripta da Sé, perto dali: “Esta é a prova de que não é preciso depender de grandes gravadoras para fazer música no Brasil! Viva a internet!”. Aí entendi: o acesso barato às tecnologias de gravação e a internet, que favorece a difusão, fazem que a parafernália da indústria fonográfica possa ser dispensável.


O problema foi que Diogo gritou alto, mas tão alto, que despertou fantasmas demais – inclusive aquele que me cutucara a semana toda. Já havia na frente do Pátio do Colégio caciques indígenas, bandeirantes, degredados e pessoas queimadas pela inquisição. E junto a esses fantasmas todos, na frente do antigo colégio dos jesuítas, eu vi – duvidei de meus olhos, mas eu vi mesmo, e juro que não havia tomado nada – eu vi o fantasma do Padre José de Anchieta. Ele trazia nas mãos o graveto que usara para escrever na areia da praia; e sorria, porque começava a entender os equívocos de seu tempo. José de Anchieta reviu a própria obra – ele, que chegou a escrever autos em língua tupi para levar a fé cristã aos indígenas, percebeu que lhe faltou fé para acreditar que nesta terra a diversidade faria milagres. E dizia a canção: “Tudo ao contrário então / Tudo à vontade então”. E o padre sacou que o público que se agrupava por ali tinhas as linhas de erê tatuadas nas costas, como havia cantado uma menina, dias antes, no SESC Pompéia. E percebeu que o idioma dos indígenas que ele tentara aculturar dava origem ao nome do conjunto que ali tocava.
Ora: eu passara vontade de falar com o fantasma do Mário de Andrade; não deixaria passar a chance de bater um papo com o Anchieta. Diria a ele que não se impressionasse: as mulheres tinham alcançado um papel fundamental no mundo, eram poetisas, tinham a chance de expressar-se, cumpriam papel fundamental na nova canção independente brasileira – elas eram consideradas gente, eram respeitadas, assim como os povos escravizados e dizimados pelos europeus. Mas a multidão crescia, Diogo urrava no palco, as pessoas não paravam de chegar e dançar e pular. E eu precisava dizer ao padre que aquela cidade, que começara numa escola jesuíta na época dele, hoje tinha quinze milhões de pessoas, mas era ainda pequena para abrigar a multiplicidade de urbanidades que se agrupavam ali – eram acreanos, paraenses, cariocas, além dos paulistanos, mas também sul-mato-grossenses, extraterrestres, gaúchos, nordestinos, todas essas pessoas do Brasil, de norte a sul, rumo ao cruzeiro; eram urbanidades amazônicas, do cerrado, do sertão, do litoral, do concreto mesmo de São Paulo, todas essas urbanidades. Anchieta acenou para o Diogo, que respondeu; o sacerdote, então, voltou as costas para mim, dirigiu-se para o interior da escola e eu gritava, Padre, Padre, por que eu vejo todos os fantasmas de escritores, mas eles só acenam para os vocalistas das bandas?, e era essa a pergunta que eu precisava que fosse respondida, porque eu já havia entendido, e me passava pela cabeça naquele exato momento, que a nova canção independente brasileira tem autonomia para criar, mas tem pela frente grandes desafios, eu não queria estar na pele dela, o primeiro desafio é a formação de um público que não procure estrelas, mas artistas; que queria desfrutar de obras de arte, não consumi-las; o segundo é o máximo aproveitamento das tecnologias disponíveis para a criação e a divulgação de suas obras, sem repetir os vícios da grande indústria fonográfica; o terceiro é lutar cada vez mais pela profissionalização dos músicos, sem explorá-los, sem lesar o que eles têm de mais genuíno, oras, sua arte; o quarto é fazer que essa profissionalização componha o que o Clemente chamou de criar uma indústria independente – toda composta numa lógica nova, sem que músicos e suas obras sejam entendidos como produtos, formando um público que aprecie a arte. E tudo isso eu pensei num átimo de segundo, enquanto gritava Padre, Padre, por que eu vejo todos os fantasmas de escritores, mas eles só acenam para os vocalistas das bandas?, e ele voltou-se para mim e respondeu, Ora, uns homens são como antenas receptoras das expectativas, das aflições, dos amores e das contradições do seu tempo, é a esses que se chamam trovadores, poetas, hoje cancionistas, aqui os roqueiros independentes, é a esses homens que nós, os fantasmas, acenamos (eu achei esse jeito de falar muito moderno para um padre, acho que o rock não lhe fez bem, eu esperava que ele me respondesse em português arcaico). E foi-se o padre. E fiquei eu com um monte de teorias, hipóteses, dúvidas, anseios, sonhos – e fui perguntar ao Diogo se ele vira o fantasma, se acenara mesmo para o padre. Mas esqueci, e só falei de mudar o mundo por meio da nova música independente brasileira.

Nenhum comentário: