domingo, 25 de janeiro de 2009

São Paulo, por 365

O maior presente que posso oferecer à Cidade de São Paulo hoje, dia em que a capital completa 455 anos de existência, é um resgate de duas canções da banda 365, cuja carreira se iniciou na década de oitenta e dura até hoje: “São Paulo” (no link, executada ao vivo no programa Musikaos), de Finho e Ari Baltazar, e “Vila Morena”, de Zeca Afonso. Além dessas, muitas outras letras da banda homenageiam, direta ou indiretamente, São Paulo. Para respeitar o tamanho reduzido que os textos de blog têm de ter, ficam para outro dia as análises de “Soneto desertado”, gravação de um poema de Glauco Matoso, “Sambódromo” e “Asa Branca”.

“São Paulo”, gravada recentemente pelos Inocentes, é uma das melhores expressões roqueiras – se não for a melhor – da capital. A canção do 365 é iniciada por um dedilhado que sugere a solidão paulistana, talvez aquele sentimento de solidão que toda grande cidade contenha; a letra que confirma essa sensação: “Tem dias que eu digo ‘não’ / Inverno no meu coração / Meu mundo está em tua mão / Frio e garoa na escuridão...”. O perfil tradicional da cidade de São Paulo, que contamina quem nasce por aqui ou que fica aqui por muito tempo, está todo nesses versos: São Paulo é a cidade do “não”, que pode ser interpretado, incialmente, como a experiência do isolamento inevitável para quem mora numa cidade desse tamanho, onde, embora caminhando ao lado de milhares de pessoas nas ruas, experimenta-se a sensação urbana do anonimato; o clima frio contamina o mundo subjetivo dos habitantes, fazendo que o eu que canta experimente o “inverno” em seu coração – São Paulo, sem dúvida, não atrai as pessoas por ser um balneário, nem é famosa pela hospitalidade aos visitantes ou moradores (temos por aqui, no máximo, a fama pela “qualidade dos serviços”, o que é bem diferente); esse mundo interno, subjetivo, do eu que canta – que pode ser ainda maior que a própria capital – reclama a falta de alguém que não está ao seu lado, e essa ausência se acentua pelo frio, pela garoa e pela escuridão. Note-se bem: “a terra da garoa” torna-se espaço de desolação – o que levaria à conclusão precipitada de que “São Paulo”, do 365, não é uma homenagem, mas uma execração à cidade.

A explosão de baixo, guitarra e bateria não desfaz necessariamente essa hipótese, como se começasse um novo dia, com o trânsito caótico se acentuando, a rádio gritando “Vambora, vambora / tá na hora vambora”, como se a cidade, ente à parte de seus habitantes, despertasse e fizesse despertar, correr, competir, predar, isto é, batalhar pela vida na “selva de pedra”; em oposição, os primeiros versos se repetem, numa expressão do que é viver nessa cidade – onde o mundo exterior, objetivo, nos apressa, nos faz devorar uns aos outros, mas nosso mundo interno segue desolado, sozinho. “Quem é seu dono? / Ninguém / São Paulo” são versos em que se acentua a idéia de que, na cidade, impera o “ninguém”, o “não” – em suma um vazio impessoal, que os moradores da cidade não conseguem superar. São Paulo seria, assim, a cidade da distância entre as pessoas, toda trabalho, frieza e sobrevivência.

Acontece que alguns versos parecem apontar para outra direção. No trecho “Sem São Paulo / O meu dono é a solidão / Diga sim / Que eu digo não”, o eu que canta parece inverter os sentidos do "não" e nos contar que se vê como parte integrante da cidade; mais fundamentalmente: o eu escolhe dizer não em oposição ao sim, isto é, opõe-se àquele cotidiano caótico e alienante, expresso pelo sim, pela aceitação de tudo que a metrópole-monstro impõe. Em outras palavras: quando se propõe a dizer não, o eu faz valer, sobre a São Paulo que o oprime, as suas próprias convicções, o seu próprio mundo interior, ressignificando os primeiros versos. E é daí que vem a afirmação final (“Desperta, São Paulo”) em que a cidade não é mais aquele ente opressor, mas o espaço cujos habitantes devem “despertar”, ou seja, desalienar-se, fazer valer as vontades da maioria.

A leitura acima pode parecer otimista demais para o leitor. A audição da canção “Vila Morena”, entretanto, talvez o faça entender entender o que quero dizer. Dê uma olhada nos versos “Grândola, Vila morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade”. Aos olhos desesperançados dos viventes do século XXI, tempo da ausência de alternativas frente ao neoliberalismo que devora as pessoas, e que as faz devorar umas às outras, a tal Grândola, Vila Morena, parece uma cidade de sonhos, espécie de Utopia, de Thomas Morus, mas à moda popular e coletiva.

Trata-se, na verdade, de um lugar homenageado pelo compositor português Zeca Afonso na canção que o 365 regravou. O ideal popular, já visível nos versos transcritos acima, está mais flagrante nos que vêm a seguir: “Grândola, vila morena / Em cada esquina, um amigo/ Em cada rosto, igualdade”. Grândola é uma cidade portuguesa na região do Alentejo. A canção foi uma das senhas transmitidas no rádio pelo Movimento das Forças Armadas portuguesas para dar início à Revolução dos Cravos, em 1974. Não vou entrar em detalhes, porque seria extenso demais, mas esse movimento, cujos desdobramentos estiveram muito associados ao Partido Comunista Português, libertou Portugal de um regime autoritário de mais de 40 anos. Gosto de entender a regravação dessa canção pelo 365 como a expressão do sonho de que, um dia, São Paulo, possa ser uma cidade em que o povo seja quem manda, uma terra de fraternidade, que em cada esquina guarde um amigo; uma terra de igualdade, cuja população despertou e disse não à opressão.

Neste tempo, em que impera o “sim” alienado e individualista, essas duas canções do 365 são o melhor presente que posso oferecer a São Paulo, com essa minha vontade já datada, mas nunca morta, de que elas sensibilizem e mobilizem a população.

3 comentários:

Humberto Mac disse...

Professor,

gostei muito desse post, até porque passei o dia hoje escutando o 365 cantar "são paulo".

E, sem hesitar, concordo com a segunda interpretação. Ainda mais porque agora que estou em Brasília, o refrão, para mim, só tem um significado: a solidão está fora de são paulo, não dentro dela ("sem São Paulo, o meu dono é a solidão").

Eu sempre pensei nesse verso como uma contestação ao clichê de que a cidade grande é o lugar da solidão por excelência. Para mim, não é. A solidão pode também estar no sertão vazio, cheio de natureza e infinito, do Guimarães Rosa.

E em São Paulo existe a opção do anonimato e da confraternização (Eu digo "sim" e, as vezes, eu digo "não" se eu quiser). Isso é só possível por causa do seu tamanho gigante.

"meu mundo está em suas mãos" - o mundo que eu conheço é São Paulo, que também é infinita como o sertao de Guimarães. Isso de "meu mundo" também me lembra uma frase do romeu na peça do shakepeare. Quando ele se vê ameaçado com o exílio, solta um "Mundo não pode haver fora dos muros de Verona". É nesse sentido que sempre entendi o "meu mundo está em suas mãos"

Abraços, professor!
:-)

Humberto (seu aluno do gh)

Rogério Duarte disse...

Humberto,

"Mundo não pode haver fora dos muros de Verona": para você, essa frase não vale - você carrega um mundo dentro de si.

Pela sua análise, já sei que, no sertão ou na metrópole, seu mundo estará sempre pleno.

Abração, e saudades!

Rogério

Anônimo disse...

oi rogerio, é a nathi do showlivre. eu criei um blog, estou te add.