quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Eu em desconcerto

Quando eu estava no colegial, a coisa que me dava mais raiva eram os caras mais velhos, de uns trinta ou quarenta anos, que sempre me diziam que o que eu ouvia não era novidade e que faltava à minha formação musical esta ou aquela banda. Admito: todas essas dicas me ensinaram muito. Por meio delas, aprendi alguns clichês que, embora desgastados, ainda me parecem verdadeiros: podemos espernear, gritar, chorar, mas, de fato, os Beatles fizeram quase tudo antes de todas as outras bandas; a voz do Bob Dylan é mesmo estranha, mas não haveria o rock que conhecemos hoje sem as canções dele; a Jovem Guarda é mesmo a matriz do rock no Brasil. Descobrir tudo isso era, às vezes, doloroso – eu queria, egoísta, que as bandas que eu ouvia fossem as melhores do mundo, mas nem sempre isso era verdade. O que não lhes tirava o mérito, nem fazia que fossem insignificantes na história do rock.

Descobri depois que, entre as muitas maravilhas de ser professor, a maior delas é oferecer aos alunos esse êxtase e essa esquisitice da descoberta: os olhos de alguns brilham quando percebem que os temas brasileiros que aparecem nas canções de hoje já eram explorados pelos escritores do século XIX, talvez até antes.

Eu também envelheci. Os alunos que primeiramente se aproximavam de mim quando eu dava aula no cursinho eram os roqueiros – o meu cabelão à Sepultura já dizia tudo na primeira aula. Há uns três anos, um garoto veio me mostrar canções de uma menina que começava a fazer sucesso – Pitty. Ouvi por alguns segundos uma delas e declarei, arrogante, que o garoto precisava descobrir o rock brasileiro dos anos oitenta, exatamente como faziam comigo os mais velhos. Senti-me superior: eu já conhecia melhor a história do rock nacional e dava uma de especialista. O aluno me ouviu atentamente e saiu um pouco atordoado: ele esperava minha opinião sobre uma roqueira atual, não uma aula de história do rock brasileiro.
O tempo passou, deixei de dar aulas no cursinho, cortei os cabelos. No último final de semana, navegando pelo Showlivre de madrugada com minha esposa, topamos com uma entrevista com a mesma Pitty, a respeito do lançamento do novo trabalho dela. Os flashes do show nos surpreenderam de tal modo que ficamos a madrugada toda assistindo à entrevista várias vezes, só pra ouvir as canções, como dois adolescentes. Impressionaram-nos o carisma da cantora e o peso do som. Pois bem, fui atrás do {Des}concerto ao vivo e voltei atrás na minha arrogância, porque voltei atrás no tempo: há bons anos eu não me empolgava tanto.

Pra começar, Pitty bebe em tantas tradições e as sintetiza de uma maneira tal que fiquei tonto: ela é mulher-menina roqueira brasileira, marcando presença numa galeria em que figuram nomes do quilate de Rita Lee e Cássia Eller; é também uma baiana como Raul Seixas e Marcelo Nova – os três transcendem, por meio do rock, o mero êxtase alienante do carnaval; apesar das diferenças de gênero, a interpretação é magnética como a de Elis Regina; as letras que mais chamam a atenção versam sobre a alienação, os valores e a velocidade do nosso mundo, com questionamentos que guardam raízes no melhor rock engajado.

"Anacrônico", por exemplo, parece uma versão moderna da "Velha roupa colorida" de Belchior, imortalizada por Elis Regina. O tema não é novo e lembra até um soneto de Camões, o famoso “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”: as transformações do mundo levam às mudanças de valores. Até aí, nenhuma novidade, um português do século XVI já havia percebido isso. Acontece que, na canção de Pitty, saquei que “surgem novos valores / Vindos de outras vontades / Alguns caindo por terra / pra outros poderem crescer / Caem um, dois, três, caem quatro / A Terra girando não se pode parar”, ou seja, percebi que não há um processo evolutivo, mas apenas uma substituição eterna, em que os tais valores são descartáveis como um produto qualquer. As ambições, entretanto, são “mais fortes, somadas com as anteriores”, num processo de acumulação. Note, leitor: os valores caem – verbo que, em nosso cotidiano, também está relacionado à derrota, à violência – e são substituídos enquanto as ambições ganham corpo. Assusta a lucidez dessa constatação. Não estamos no terreno fácil das letras alegres.

"Admirável chip novo" é alusão direta à obra de Aldous Huxley, Admirável mundo novo. E essa citação, pela facilidade evidente, oculta uma outra: uma canção de Gilberto Gil de nome "Futurível" em que o eu que canta – um “cientista detentor da tecnologia”, nas palavras do próprio autor – diz ao homem que não se preocupe com o processo pelo qual está passando: os olhos serão de cobre, os braços de estanho; a humanidade mutante será mais feliz porque “Na nova mutação / a felicidade é feita de metal” e o sistema do cientista manterá a consciência do ser. A versão nada animadora de Pitty, que aprofunda a ironia do ministro: “Pane no sistema, alguém me desconfigurou / Aonde estão meus olhos de robô? / Eu não sabia, eu não tinha percebido / Eu sempre achei que era vivo”. E depois, mais cruel, depois da reinstalação do sistema (palavra cujo duplo sentido enriquece a interpretação): “Pense, fale, compre, beba / Leia, vote, não se esqueça / Use, seja, ouça, diga / Tenha, more, gaste, viva”. Gostei mais ainda: o otimismo fácil a respeito da evolução tecnológica omite ou oculta o processo alienante que ela traz consigo. Em "Déjà Vu", Pitty já avisava que nenhuma doutrina a convence – sensação da qual tenho partilhado cada vez mais.

Em "Semana que vem", fiquei sabendo que “Nós não temos todo o tempo do mundo” – e tive de concordar com essa subversão de um dos mais importantes versos da minha geração. Não há aí mero desfrute irresponsável da vida, porque, em "Memórias", descobri que só dando o melhor de si é que se consegue fazer que as coisas ao redor se movam. Acho que {Des}concerto ao vivo me sensibilizou tanto porque ali pulsa uma vontade incontrolável de mudar o mundo e porque a maioria de suas canções diz respeito ao tempo que eu sei que já não tenho: as canções da Pitty transportaram-me, na passagem de um verso, para o presente.

6 comentários:

Pitty disse...

Rogério,

nao sei pq escrevi as coisas que escrevi, e nunca tinha me visto dessa forma. Você me desvendou de forma encantadora e crua, com uma sensibilidade absurda. Eu me conheci um pouco mais através das suas palavras. Obrigada por me fazer sentir que vale a pena.

Bjs,Pitty

* peço licença para disponibilizar o link do seu texto no meu twitter e fotolog. ;)

Rogério Duarte disse...

Pitty:

Em primeiro lugar, fico muito feliz pela sua leitura. Não só porque você gostou do texto, mas também porque, graças à internet, temos a chance de dialogar a respeito de trabalhos de qualidade como o seu.

Como já respondi no Twitter: o texto é mais seu do que meu.

Beijão,

Rogério

Carla disse...

Muito bom!E aleluia, um a menos pro: "eee ooo vida de gaado...povo marcado; povo feliz"(: pensando na boiada, pobre rebanho.

Diego Machado disse...

Gostei dessa tônica ao {Des}Concerto, Pitty é uma das poucas compositoras atuais que escrevem algo relevante e real! É admirável quando alguém valoriza isso! Geralmente quando se entra em questão algo da nova geração geralmente os mais "sabios" vem com sete pedras nas mãos. E uma salva aos que pensam e se expressam!

Rogério Duarte disse...

Carla: obrigado pela leitura! E pelo otimismo!

Diego: talvez os tais "sábios" de que você está falando tenham medo de se renovar. Problema deles. O novo ocupa o lugar do velho inevitavelmente. É o que a Pitty já está fazendo!

Unknown disse...

Muito bom!!! Ótimo resumo sobre os trabalhos da Pitty! Amo essa mulher demais...