quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Exilados em nossa própria terra

O que é o Brasil? O que nos faz os brasileiros? O que têm os brasileiros que os faz diferentes de outros povos? O que tem o Brasil que outros países não têm? Essas perguntas permeiam as obras de muitos autores da nossa literatura. Também em muitas canções da MPB e do rock, observamos essa mesma tentativa de esboçar a identidade nacional.

O título da canção “Brasil Pandeiro”, dos Novos Baianos, por exemplo, já traz em si um dos instrumentos-símbolo do que se considera música autenticamente brasileira. Para os roqueiros, contudo, a coisa é mais complicada. Raras vezes há pandeiro nas suas composições. Nem todos eles podem ser chamados de “gente bronzeada”: rock é música predominantemente urbana, nascida e criada no concreto e no asfalto, que passa longe das areias tropicais. Não é à toa que Brasília seja um dos grandes berços do rock nacional, exatamente por estar muito distante das praias, por ser uma cidade planejada, de projeto urbanístico futurista.

Pois bem, temos um dilema: o Brasil é a nação do samba, do carnaval, das praias; o rock, pelo menos inicialmente, não dialoga com esses ritmos e com esse ambiente, ao contrário: é importado, não nascido em terras tupiniquins e, exatamente por isso, considerado estranho à MPB. Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico, no livro Raízes do Brasil, já avisava: “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”. A importação e a consolidação do rock nestes tristes trópicos nada mais são, portanto, do que reflexos de nossa identidade, por mais que isso pareça contraditório. Em palavras mais simples: uma característica marcante de nossa cultura é essa tentativa de sermos, ao mesmo tempo, brasileiros e estrangeiros. Os intercâmbios, os mochilões, as expatriações, a sensação de que “não nasci para este calor”, as conversas a respeito de como “lá fora” é bom e aqui ruim, ou o inverso, todas essas manifestações desse sentimento tão brasileiro de que precisamos ir ao exterior para nos entendermos melhor são expressões dessa sensação bizarra de ser estrangeiro no próprio país. Ouvir rock nestas terras pode ser mais uma tentativa de manter uma idéia estrangeira neste ambiente desfavorável e hostil, cheio de pandeiros e cavaquinhos.

Na literatura, o poema mais famoso a respeito da identidade nacional é a “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias. Até os maiores cabulões das aulas de literatura conhecem os versos “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá”. Distante da pátria, o sujeito poético lamenta-lhe a falta, marcando o texto, bem ao gosto da época, com elementos de nossa exuberância natural. No Brasil do século 19, a identidade nacional estava diretamente ligada às palmeiras e aos sabiás, isto é, à fauna e à flora nacionais.

Vamos dar um salto no tempo. Até hoje vigora o discurso a respeito de nossos sei lá quantos quilômetros de praias, da beleza do Pantanal e da importância das reservas naturais da Amazônia. Há, contudo, uma canção do rock nacional que rompe com todo esse suposto nacionalismo calcado na fauna e na flora, embora retome o tema da identidade nacional: “Lugar nenhum”, dos Titãs.

Ao contrário da Canção do Exílio, os versos começam com a negação da identidade do sujeito ligada ao país: “Não sou brasileiro / Não sou estrangeiro”. Exatamente aquele limbo de que falava Sérgio Buarque: a sensação de que “Eu não tô nem aí” – no sentido de que “não me importo com a questão da nacionalidade” – e de que “Eu não tô nem aqui” – verso que, associado ao anterior, revela a mesma indiferença e a sensação de vazio que é, em alguns momentos, “ser brasileiro”. Em resumo, o sujeito poético da canção está, numa primeira leitura, esvaziado de identidade: não é brasileiro nem é o oposto disso; ele não é de “nenhum lugar” nem é de “lugar nenhum”.

Depois, surgem as cidades e as nacionalidades: “Não sou de São Paulo, não sou japonês / Não sou carioca, não sou português / Não sou de Brasília, não sou do Brasil”. É no mínimo interessante observar que três das maiores cidades do país são citadas nos versos acima; também nelas, nos anos 80, houve significativo movimento de rock, numa sugestão de que a identidade musical dos Titãs não estava associada a um ou outro bairrismo: não é paulistano, carioca, imigrante ou colonizador. Também não é do coração-capital do Brasil nem do próprio Brasil, numa retomada dos primeiros versos.

Que podemos entender da letra? Tenho a impressão, em primeiro lugar, de que, ao contrário do que sugeria a primeira leitura, esse texto é bem brasileiro, justamente porque passa longe daquela visão romântica do país, preocupada em pintar a identidade nacional com as cores das nossas riquezas naturais. Nosso dilema sempre foi alcançar aquilo que nos diferençava de nossos vizinhos, isto é, esboçar o que somos em comparação com os estrangeiros. Como diria o pai do Chico, insistimos em tentar aclimatar a nossas terras tropicais idéias e costumes que não têm origem nessas mesmas terras. Em palavras mais simples, de novo: insistimos em fazer rock na terra do samba. Daí nossa aflição: somos brasileiros que fazem rock ou roqueiros fora do lugar? “Lugar nenhum”, dos Titãs, é, portanto, expressão clara de uma aflição bem ao gosto nacional.

Nenhum comentário: