Me impressionou muito a apresentação do Cordel do Fogo Encantado no Estúdio Showlivre. Eu já conhecia – e adorava – o terceiro CD dos caras, mas meus amigos e alunos que também gostavam deles já tinham avisado: “Você precisa ver o Cordel ao vivo”. Quando o Clemente me avisou que a banda ia participar de um “Estúdio Showlivre ao vivo”, não perdi a chance de assistir à gravação.
O que o pessoal dizia era a pura verdade. A energia e o magnetismo do espetáculo são impressionantes. Só fico imaginando como deve ser, num show não-virtual, a reação do grande público ao declamar/cantar hipnótico dos poemas-canções, à percussão contagiante e aos violões arrojados, apocalípticos. De onde vem essa vibração toda? Por que ritmos regionais como os explorados pelo Cordel acabam fazendo tanto sucesso nas capitais, cujo público, supostamente, os desconhece? Em que medida, no som dos caras, há influências do rock? Como elas se combinam àqueles ritmos? Vamos examinar algumas hipóteses.
Em primeiro lugar, um querido aluno meu lá do cursinho preparatório para concursos definiu brilhantemente o carisma de Lirinha, vocalista e letrista do Cordel, chamando-o de “Jim Morrison Brasileiro”, uma belíssima comparação entre as marcantes performances de palco dos dois letristas, o brasileiro e o norte-americano, falecido em 1971. Embora muito diferentes, as apresentações de ambos são um espetáculo à parte: seus poemas, sem suas interpretações, seriam outros, como se esses autores estivessem revestidos de uma “aura” – uma versão carnal do “eu-lírico” que aprendemos nas escolas – da qual emana a própria poesia. É de assombrar qualquer um. Mas também é evidente que o sucesso que o Cordel tem alcançado não se deve apenas à performance magnética de seu vocalista e poeta. Combinada a ela, existem elementos fundamentais da letra e da música do Cordel.
O primeiro deles é uma mistura ímpar da poesia popular com o que se costuma chamar de literatura “culta”. Aquela, a literatura de cordel, é um gênero popular de literatura nordestina. Genericamente, os textos de cordel têm origem em composições musicais de cantadores do povo. Eles costumam publicar as letras das canções em pequenos folhetos, vendidos em feiras. Essa tradição literária começou a ser estudada no final do século 19, mas é certo que ela existe há muito mais tempo e dura até hoje. Os temas investigados pelos cordelistas são variados: alguns remontam a textos da Idade Média, como a história do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França; há descrições de secas, enchentes ou fatos curiosos do cotidiano; há, ainda, relatos da vida e dos feitos de cangaceiros, como Lampião ou Antônio Silvino, ou de personalidades religiosas ou políticas, como Padre Cícero ou Getúlio Vargas. O episódio do testamento da cachorra, no Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, guarda raízes em alguns desses textos. Para mim, o mais interessante dessa tradição literária é sua capacidade de combinar temas e formas tradicionais, do passado, com acontecimentos e personalidades do presente. O lamentável, contudo, é que a literatura de cordel é raras vezes estudada nas escolas, em que a literatura “culta” tem muito mais espaço. E já está aqui o primeiro mérito do Cordel do Fogo Encantado: trazer para o universo urbano, principalmente para as capitais do Sudeste, essa marca fundamental da cultura popular brasileira, desconhecida da maioria dos estudantes e jovens dessa região.
Na obra do Cordel do Fogo Encantado a tal literatura culta também não fica de lado. Dê uma olhada em apenas dois títulos de canções de “Transfiguração”, terceiro trabalho do Cordel: “Pedra e Bala (ou Os Sertões)”, em que há alusão direta à obra máxima de Euclides da Cunha; ou, ainda, “Morte e Vida Stanley”, que remete a “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto. Em primeiro lugar, gosto de títulos que têm expressões entre parênteses (fica uma coisa bem rock n’ roll, como já lembrava Renato Russo, do tipo “(I can’t get no) satisfaction”, dos Stones, ou “Tédio (com um T bem grande pra você)”, da própria Legião); gosto mais ainda da conjunção “ou” nos títulos, que revela ao ouvinte que a canção dialoga, também, com a literatura “culta”. O Cordel do Fogo Encantado impressiona porque associa a tradição literária culta das capitais, dos escritores estudados nos bancos escolares, à tradição literária popular, de origem regional, sem desprezar – nem supervalorizar – uma ou outra.
Mas ainda não é só isso, porque as canções não são feitas só de letra. Há, ainda, a percussão – em que se misturam ritmos populares nordestinos – temperada com rock n’ roll, nos violões e na fúria do resultado final (de fato, o som é pra bater cabeça). Essa mistura é bem descrita num livro curto e inteligente: Sertão alumiado pelo fogo do cordel encantado, de Ana Paula Campos Lima, fã da banda.
Nesse livro, também é levantada a discussão a respeito de o Cordel ter ou não se submetido às formatações da indústria cultural fonográfica. Traduzindo: ao adaptar seu modo de fazer música às parafernálias tecnológicas das grandes gravadoras, que estão sempre de olho nas expectativas do “mercado consumidor” das grandes capitais, não teria o Cordel perdido um pouco de suas raízes populares? Tenho, particularmente, a impressão de que isso não aconteceu. Já lembra um importante crítico de literatura e música (ele próprio compositor), José Miguel Wisnik, que as canções populares brasileiras se deixam permear pela cultura popular não-letrada, pela literatura “culta” e pela indústria cultural, sem pertencerem, completamente, a apenas um desses sistemas culturais. É exatamente o que ocorre com o Cordel do Fogo Encantado: múltiplas interferências de diferentes fontes da cultura brasileira.
Me parece que esta é a grande sacada do Cordel: a qualidade da poesia – com raízes populares e cultas, declamada/cantada com carisma único pelo vocalista, que lembra, simultaneamente, os cantadores de cordel e os ícones-poetas do rock – está associada à potência do som, em que se entrecruzam influências populares e da indústria cultural do rock. Na obra do Cordel do Fogo Encantado, o passado – a tradição popular e a tradição culta de nossa literatura – dialoga com o presente – o rock, as inovações tecnológicas da indústria fonográfica – de maneira tal que nos encantamos/enfeitiçamos por essas canções que parecem estar fora do tempo e do espaço, porque combinam passado e presente, sertão e cidade.
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