quarta-feira, 26 de junho de 2013

Porcas Borboletas: o homem falhado no mundo das mercadorias


O impacto do novo disco dos Porcas Borboletas começa no título de uma das canções: Todo Mundo Tá Pensando em Sexo - por incrível que pareça - é a ainda uma afirmação incômoda, exatamente porque vai seguida da pergunta "Será que só você não, meu bem?". É muito dos Porcas essa habilidade de enunciar tabus com o gracejo de quem finge que não sabe que está cutucando onça com vara curta. É a feição borboleta dos Porcas, sempre temperada de uma mordacidade específica: a do conteúdo do que se diz. Uma imagem, pra ajudar na hipótese (inspirada em frase de Borges): as canções dos Porcas Borboletas repousam sempre no vestíbulo intermediário entre o jardim de infância e a Rua Augusta.

Aliás, a Rua Augusta - ao menos a Augusta que está registrada no filme Augustas, de Francisco Cesar Filho, baseado no livro A Estratégia de Lilith, de Alex Antunes - é cenário da canção de que gostei mais, "Tudo que eu tentei falhou", de estrutura simples, abertura furiosa e acelerada, que será também refrão. Nas partes, ouvem-se as tentativas do Sujeito da canção: "Sapatênis / Bandana / Sunga dos Esteites / Suspensório". Ele corre do traje aplayboyzado ao descolado, do ridículo ao yuppie. Ouvindo a canção toda, não será difícil perceber que se trata de Sujeito à cata da própria identidade sempre em padrões que lhe são externos. Certamente os Porcas não são os primeiros a avaliar o vazio dos alienados - mas é o modo com que o fazem que chama atenção.

De engraçadas, como nessa primeira parte, as enumerações de intentos do Sujeito da Canção passam a hilárias ("Relacionamento aberto / Fechado / Ménage à trois / Suruba psicodélica") e finalmente, como propus logo no começo, mordazes: "Paraíso / Purgatório / Inferno / Rua Augusta". Esta última enumeração é de longo alcance: temos aí a inversão das três partes da Divina Comédia, de Dante, seguidas da Rua Augusta - como se esta fosse o desdobramento dos horrores infernais. É de supor que a gradação que vai da virtude do Paraíso ao vício da Augusta sugira o mergulho do Sujeito da Canção, ainda à procura de si mesmo, nos paraísos artificiais, dos místico-religiosos aos psicodélicos, verso e anverso um do outro.

O projeto de "experimentar tudo pra depois ver o que você prefere" tem por pressuposto um sujeito vazio - cuja ansiedade é marcada no riff inicial. Se na "Estrela Decadente" do álbum A Passeio esse sujeito esvaziado de si era a celebridade na forma de Pinóquio, de cujo nariz só escorria "cocaína de verniz", aqui o hiperativo de "Tudo que eu tentei falhou" é o homem comum de personalidade aderente ao mundo das mercadorias - duas faces da mesma miséria humana: "Rexona / Avanço / Leite de Rosas / Minâncora na axilas".

Walter Benjamin descreveu bem, em famoso texto a respeito da obra de Baudelaire, a propriedade de transmutação das mercadorias, infinitamente, à cata da forma específica que encantaria o consumidor. Aliás, no estudo da natureza das mercadorias, Marx afirma, de modo geral, que seu valor vai assumindo formas diferentes, até alcançar seu fim último, que é a valorização. A enumeração caótica das tentativas, ao final da canção, parece figurar precisamente essa passagem infinita de uma forma a outra - em cujo processo as identidades se tornam, para dizer o mínimo, passageiras. No extremo, o Sujeito se dissolve em outras tantas, diversas e distintas manifestações de si, que lhe escapa ele próprio.

Eis aí a feição porca dos Porcas Borboletas: se a canção tinha início em enunciações divertidas que revelavam um sujeito perdido de si, a desordenação final dá a ver que a própria identidade foi suprimida na lógica das mercadorias. Não há sujeito aqui - há apenas coisa em desfile, como muitos mortos-vivos das ruas augustas. Daí o fim abrupto da canção, como se anunciasse o próprio desaparecimento do sujeito, que só tem a própria canção "Tudo que eu tentei falhou" como registro de que esteve (quase) vivo.

Ouça o disco inteiro

terça-feira, 11 de junho de 2013

O direito (e o dever) da pesquisa estética: uma hipótese

Avaliando o movimento modernista de 22, Mário de Andrade afirma que o legado da Semana de Arte Moderna repousa em três princípios fundamentais. O primeiro deles me interessa precisamente aqui, porque diz respeito diretamente às relações entre a canção brasileira e a literatura: o direito permanente à pesquisa estética. Grosso modo, Mário de Andrade acreditava que um pressuposto fundamental para a criação artística, de forma geral, era a pesquisa nessa área.

A inanição intelectual em que vivemos mergulhados, na maioria das vezes, impede que percebamos a clareza e a atualidade desse legado mariodeandradiano. É simples: a canção popular brasileira já pode ser considerada um dos maiores resultados da produção artística brasileira. Sérgio Buarque de Holanda diria que, com nossa canção, enriquecemos "a humanidade com aspectos novos e imprevistos". Hoje já não devemos, por exemplo, quase nada à canção norte-americana, ao contrário: se é pra usar os termos da economia, arrisco dizer que o Brasil já é mais credor do que devedor se considerarmos a qualidade dessa produção.

Dizer que a música e a cultura brasileira estão em decadência só pode ser resultado de ignorância ou de má fé. A indústria cultural fonográfica está longe de ter melhorado os produtos que oferece ao grande público, mas um mercado paralelo de canção brasileira, chamado de independente ou underground, só tem crescido e é dele que advêm as melhores soluções para a nossa canção do ponto de vista estético. Aqui é que o pensamento de Mário de Andrade se faz atual: que soluções foram essas? É precisamente o direito a essa pesquisa que é preciso reivindicar, porque somente a investigação de obras como, por exemplo, a de Itamar Assumpção (só pra citar um compositor pouco ouvido e, assim, dar a medida da tibiez do exercício desse nosso direito) é que permitirá entender o papel grande que o Brasil cumpre no sistema internacional das artes.

Mário de Andrade fazia aquela avaliação em 1942 - mas o direito à pesquisa estética não foi plenamente adquirido até hoje. Nos poucos espaços em que se debate a canção popular, na esmagadora maioria das vezes, prefere-se divulgar uma nota informativa ou um furo jornalístico a investigar as próprias obras. Pior: discute-se mais o mercado da canção do que a própria canção. Depois do texto "A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução", de Walter Benjamin, não dá mais pra discutir uma coisa sem a outra, é claro. Mas faltam pesquisas em cujo núcleo esteja a canção, em que se verifique em que medida os meios em que ela é divulgada lhe interferem na forma e vice-versa. Honrosas exceções são os trabalhos de Luiz Tatit e José Miguel Wisnik.

O que desalenta ainda mais é o fato de muitos músicos e outros artistas abrirem mão da pesquisa estética, restringindo-se às expectativas de mercado. Em outras palavras, sobra a muitos artistas o misancene de artistas - os trejeitos, os chiliques, os siricoticos -, mas lhes falta o mergulho necessário na tradição de nossa canção, que já se agiganta. Apropriar-se da tradição acumulada, reconstituir e reescrever, na própria obra em composição, a história e o traçado da canção brasileira, pra aprofundar ou pra superar, em movimento dialético, esse cabedal que já temos: minha hipótese é a de que são esses alguns dos nortes que poderiam orientar a composição das canções de modo a fazê-la escapar cada vez mais aos enlatados da grande indústria.

Nos próximos textos, devo testar a hipótese acima a partir da análise breve de algumas obras recentes da canção popular brasileira. O ideal seria testar as hipóteses com a contribuição dos leitores, na caixa de comentários. Na medida do possível, os textos serão curtos como este, de modo a tentar angariar o maior número de leitores possíveis - afinal, minha intenção é fazer deste blog, tanto quanto me for possível, exatamente um espaço de exercício do direito à pesquisa estética.           

sábado, 8 de junho de 2013

A dialética do trânsito (retomando a Métrica)

Já vão pra lá de quatro anos que não escrevo um texto para a Métrica do Grito. E não faltou assunto pra escrever por aqui. Mas, em minha pesquisa de doutorado, deixei o rock de lado pra poder aprofundar-me na literatura e nos textos de Adorno e de Walter Benjamin - minhas outras paixões, anteriores ao rock, aliás. Dediquei-me integralmente, sem medo, porque sabia que, ao final, a Métrica do Grito estaria exatamente aqui onde está. Pois bem: doutorado entregue, retomemos as atividades.

Nesse tempo todo, tive a chance de circular bastante. Tive tempo e sofri mudanças de ares suficientes pra confirmar o que suspeitava desde o distante 2005, quando comecei o mestrado a respeito de Faroeste Caboclo, da Legião Urbana: São Paulo é cidade de passagem, de trânsito - em dialética dos dois sentidos que essa palavra pode ter, tanto o de "tráfego interrompido", quanto o de "circulação" -, cuja vocação ancestral, sempre retomada e abandonada, é receber artistas de fora e dar-lhes visibilidade, permitir-lhes conhecer outros tantos artistas, daqui e de outros tantos lás. Mas enquanto outras cidades têm diversas usinas populares de cultura que lhes permeiam e oxigenam a produção cultural, São Paulo vem segregando cada vez mais as periferias - onde de fato se cria a matéria-prima original da cultura, creio eu.

Tenho a impressão de que foram o Criolo do Nó na Orelha e o Emicida do Pra quem já mordeu... os aglutinadores da cena musical paulistana nos últimos anos. Na Nova Canção Brasileira, a multiplicidade de gêneros é questão de gosto, não de segregação - em sentido rigorosamente contrário ao do que tem ocorrido, em termos sociais, em São Paulo, de forma cada vez mais flagrante. Recebemos aqui uma infinidade de compositores, agitadores culturais e políticos vindos de todas as partes do país - é, portanto, natural que o rock resvale no tecnobrega e que o rap se amaneire de samba, de rock, de MPB.

São Paulo é trânsito estático e asfixiante nas ruas empestadas de brutalidade nas mais diversas formas, por meio das quais nossas classes dominantes, das mais conservadoras, resistem ao Outro Mundo Possível que se apresenta na Nova Canção Brasileira. É essa a São Paulo que não tem amor: a das avenidas remoradas de carros, a dos corpos dos ciclistas esquartejados também na alma, a da Polícia Militar interrompendo o fluxo dos manifestantes. Esta são paulo em minúsculas é toda reprodução e repetição de modelos arcaicos e de discursos consagrados - em que os habitantes da cidade não são sujeitos da própria vida e da própria história. Esta são paulo é a cidade que não pára, de mercadorias e melancolias cuja vida foi tomada aos homens.

Essa são paulo estática é, via de regra, objeto das canções de uma outra - a São Paulo das vozes da periferia, que avisam que há outras formas de convívio; a das vozes de fora de São Paulo, que fertilizam de outros ritmos o digitar estalado dos teclados dos prédios de escritório. São Paulo é toda circulação e vitalidade, sua vocação original, nas composições de gente que, mesmo morando no centro expandido, experimenta ainda outra São Paulo, sempre para além dos preços exorbitantes dos roteiros aplayboyzados Vejinha: esta São Paulo maiúscula, da radicalidade do questionamento, em multiplicidade de vozes e vias, em diálogos por construir no presente.

Daniel Groove e a cidade sem horizonte



No primeiro plano, da primeira a última cena, o clipe de Cadê Você, dirigido por Eduardo Escariz e Vivi Rodrigues, põe em evidência Daniel Groove, especialmente em sua dimensão como artista, o rosto muitas vezes sisudo, que a ambiência da canção pede, já que versa sobre a falta do outro; mas se investigarmos um pouco mais, perceberemos que o clipe transcende a dimensão de espetáculo e mergulha mesmo no universo mais íntimo do sujeito poético Daniel Groove e do sujeito comum Daniel, integrando-os num só e transcendendo-os para muito além do que pode imaginar o espectador.

Os primeiros segundos do clipe já acenam para a ideia de que está por se constituir, diante de nossos olhos, uma personagem. Daniel monta um cenário, do qual fazem parte gravuras diversas e, especialmente, a moldura de espelho a que falta espelho, que foi utilizada em ensaio fotográfico da época do Projeto Mais Massa. Recado dado, depois do fade out: o que vem a seguir é ficção, carregada de promoção da banda e de seu trabalho – esta é a vocação inicial do vídeo-clipe, desde seus primórdios, com os Beatles – e da consolidação de um ícone – o próprio Daniel Groove, personagem da Augusta, o cearense enorme e barbudo que conhece os músicos, o público, os donos das casas noturnas, os garçons do botequim, os intelectuais e os jornalistas. Ele veste a camisa, empunha o violão e canta – Daniel é todo sua arte no vídeo, da mesma forma que é todo sua vida nas canções que compõe.

O vídeo pode ser entendido, portanto, como desdobramento dessa promoção, como se intentasse inscrever Daniel em São Paulo, para além da Rua Augusta, mas especialmente no centro da cidade. Mas me parece que ainda é pouco: aos primeiros acordes da canção, Daniel Groove, já erigido em personagem, observa atentamente o céu. (Quem é que olha o céu em São Paulo?) Arrisco dizer que onde falta horizonte, recorre-se ao céu como ponto de fuga. Assim, a cena inicial aponta o encontro do Daniel Groove personagem com o Daniel Groove empírico, pessoa, meu amigo – aquele que, apesar de instalado num espaço sem horizonte, intenta alcançar espaço na galeria dos grandes compositores brasileiros. E consegue.

Mas não poderia ser diferente a sensação de solidão, que permeia todo o clipe. No show de lançamento de O Segundo Depois do Silêncio, dos Los Porongas no Centro Cultural São Paulo, Diogo Soares afirmou que ir a São Paulo viver de música era loucura. Suponho mesmo que seja, sobretudo devido à sensação de solidão ou de isolamento que observei diversos artistas experimentarem na cidade. É preciso respeitar o poder que ela tem de oprimir, mas é necessário não acovardar-se diante dela, sob o perigo de ser atropelado por um Mercedez: a lógica cruel do mercado – coração da cidade de São Paulo – aprecia destruir as vidas daqueles que acreditam que o amanhã pode ser diferente do hoje.

Mas Daniel Groove é que atropela a cidade, por assim dizer. Primeiro, amanhece olhando o céu, na falta do horizonte, lembrando-se das conquistas e das tragédias pessoais, mas seguindo adiante – daí a ideia constante de movimento no clipe. Daniel transita o tempo todo na cidade do trânsito, circula pelas artérias da pressa, do trabalho, da busca cega por sobrevivência e dinheiro. Mas ironiza tudo isso, quando se deita no viaduto sobre o congestionado corredor Leste-Oeste da cidade – isto é, enquanto corre o fluxo do mercado, Daniel pára e observa o céu, espécie de mantra visual que parece alertar, inspirado em Carlos Drummond de Andrade, que “O presente é tão grande, não nos afastemos / Não nos afastemos muitos, vamos de mãos dadas”. Bastam, para Daniel, as separações inevitáveis e indesejadas que a vida impõe: daí a cena em que surgem os amigos e parceiros Saulo Duarte e João Eduardo. O Daniel personagem integra-se ao Daniel empírico e real quando ambos se apercebem que a canção, embora integre, transcende a lógica da cidade, que não pára. Por isso ele pára no meio da cidade, ou pára a cidade, quando canta, em performance inesquecível para quem já assistiu aos shows do Sonso.

Assim, toda a ambiência de ruas vazias e amplas do clipe – o Minhocão sem carros nem pessoas – não dá apenas a dimensão da experiência solitária da cidade, mas também amplifica o alcance dessa solidão em nossos íntimos. São Paulo tem quinze milhões de pessoas, e a maioria delas se sente solitária. Pra lidar com isso, uns frequentam terapia, outros botequim; tem gente que trabalha das seis da manhã à meia-noite, tem gente que foge pra longe. Daniel Groove senta no olho do furacão e transforma as experiências em canções – e o clipe em que, além de Daniel, a grande protagonista é São Paulo só poderia ter como fio condutor uma canção sobre a falta do outro.

Lá pelos três minutos e meio, observa-se em branco-e-preto uma sequência de Daniéis todos fictícios, versões caricaturais daquele outro, solitário. Não suponhamos que haja necessariamente um Daniel primordial ou verdadeiro, porque talvez não exista isso em ninguém (somos todos, um pouco mais ou um pouco menos, personagens de nós mesmos), mas imaginemos o Daniel consigo próprio, solitário; é difícil imaginá-lo sem espetáculo, mesmo nas situações corriqueiras, como torcedor de futebol ou leitor contumaz de livros-cabeça. A concepção visual dos diretores, agora, acaba por ironizar a própria dimensão do espetáculo em si e por si, que pode cair na artificialidade pura. Certamente não é o que ocorre com O Sonso, especialmente nas apresentações ao vivo, cuja potência está rigorosamente concentrada na autenticidade de Daniel quando sobe ao palco: concluídas as caricaturas, a imagem recupera as cores, a vida, e Daniel volta ao figurino conhecido e ao violão em punho, cantando a plenos pulmões. O clipe conclui-se, assim, com a integração do Daniel do espetáculo – no palco e nas entrevistas de imprensa – e do Daniel da intimidade – nos churrascos do Cambuci Roots.

Nos últimos acordes, a canção conclui-se com o céu ao fundo, a luz delineada por uma árvore feia – Drummond se a visse diria que é feia, mas é realmente uma árvore, que deixou em segundo plano a especulação dos grandes guindastes e que furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio da cidade.  As canções de Daniel Groove pontuam ao espectador que é por meio da arte que se constitui o sumo autêntico da vida – mesmo numa cidade sem horizontes.