"Aluga-se-vende" era uma canção amarga: nela, vimos que o eu que canta lamentava as interferências da vida afetiva na vida material e vice-versa. O resultado final era a tentativa malograda de botar para fora as lembranças, último resquício da relação amorosa que havia acabado. De certa forma, a lembrança é uma forma de perpetuação do passado sobre o presente: quem só vive de lembranças não tem tempo para experimentar o presente ou criar expectativas para o futuro.
A sensação de que a vida se perdeu em nostalgia talvez seja das piores. Mas não é com ela que nos deparamos na canção "O Tempo", dos mesmos Móveis Coloniais de Acaju:
O desafio ao Tempo
Em "O Tempo", os arranjos são alegres e coloridos, os versos são de um eu completamente apaixonado. Pulemos, por instante, a primeira estrofe. "Parece que até jantei / Com toda a família e sei / Que seu avô gosta de discutir / E sua avó gosta de ouvir / Você dizer que vai fazer": uma análise rápida diria que esse eu fascinado com o ser amado é diferente do de "Aluga-se-vende". É o contrário: a concepção amorosa que está por trás das duas canções é a mesma. Nos versos acima, percebe-se que, quando ama, o eu se deixa tomar pelo outro: não basta conhecê-lo, amá-lo, é preciso também jantar com seus familiares, porque estes são parte do ser amado - e o eu quer possuí-lo todo. Talvez por isso a relação amorosa cujo final observamos em "Aluga-se-vende" não tenha dado certo: lá, o eu e o outro não compunham um só, não eram da mesma família, já não partilhavam mais nada.
Voltando aos primeiros versos, em que está proposto o desafio da canção: "A gente se deu tão bem / Que o Tempo sentiu inveja / Ele ficou zangado e decidiu / Que era melhor ser mais veloz / E passar rápido pra mim". Alguns detalhes precisam ser observados: primeiramente, notemos que a canção começa com o termo "a gente", em que estão contidos o eu e o ser amado por ele, o que confirma a hipótese anterior: o eu só está amorosamente completo se estiver em plena conjunção com o outro, a ponto de eles serem um terceiro.
Além disso, é preciso perceber que a palavra Tempo, com a letra maiúscula, está personificada - podemos dizer que ele é o grande rival do eu que canta. A canção ganha, assim, dimensão trágica: o eu, a quem o Destino presenteou com o amor, é um perseguido pelo Tempo, que lhe tem inveja. O eu está investido, portanto, de uma dimensão heróica: resistirá ao tempo por causa do amor. E vencerá, como veremos - talvez seja esse o encanto da canção.
Não adiantemos as conclusões e deixemos, de lado, o refrão. Nos versos "Espero o dia que vem / Pra ver se te vejo e faço /O Tempo esperar como esperei / A eternidade se passar / Nos meus segundos sem você": aqui, o eu desafia o Tempo o tempo todo (a repetição é proposital), atrasando-o. Quando está sem o ser amado, o eu mede a passagem do tempo em segundos. Embora, desse modo, a sensação de correr do tempo seja mais aflitiva, a percepção de superação do tempo é mais constante. Notemos: para o eu apaixonado, cada segundo superado, por mais que seja eterno, o aproxima do dia que virá, em que estará ao lado do ser amado.
Vencendo o Tempo, esse teimoso que não para
A melhor estrofe da canção é a seguinte, "Agora eu já nem sei / Se hoje foi anteontem / Me perdi lembrando o seu olhar / O meu futuro é esperar / Pelo presente de fazer", que, ao final, engata no refrão. Iniciada pelo advérbio "agora", a estrofe contém a sensação de estar ao lado do eu amado: o tempo para, fica suspenso, a ponto de o eu não saber diferenciar o hoje do anteontem, a ponto de ficar perdido no olhar do ser amado. No futuro, a perspectiva de agir por meio do amor, retomando o desafio ao tempo, fazendo-o engatinhar. O refrão ganha, nesse momento, uma variação: "O Tempo engatinhar / do jeito que eu sempre quis / distante é devagar / perto passa bem / depressa assim / pra mim". Ora, está aí a explicação do desafio do eu, cujo universo subjetivo ou afetivo, fortalecido pelo amor, é capaz de desafiar o tempo cronológico, cronometrado. Em "Aluga-se-vende", esse universo estava enfraquecido pela falta de amor, por isso a dimensão material ganhava espaço: os objetos que deveriam ser divididos na separação, a força do dinheiro, a briga pelo espaço da casa que deixava de ser lugar de partilha para ser campo de batalha.
"Se o Tempo se abrir, talvez / Entenda a razão de ser / De não querer sentar pra discutir / De fazer birra toda vez / Que peço um tempo pra me ouvir". Agora, o Tempo é tratado como um ser teimoso, birrento, imaturo - o Tempo é como os adolescentes, que só querem avançar incessantemente, sem parar para conversar, para avaliar o passado. O Tempo não tem paciência para aprender com a passagem do tempo. Abrir-se talvez signifique rever-se, reavaliar-se, mudar, mas o Tempo é incapaz de fazê-lo: como ele é sempre igual, com o mesmo ritmo objetivo, é um grande conservador, incapaz de experimentar o diferente; embora esteja em constante renovação, o Tempo é sempre o mesmo, por isso não tem nem pode ter a competência de amar: quem ama, ao menos na concepção do eu que canta, tem de estar pronto para o diferente, para o outro que vem para formar um terceiro, síntese da entrega amorosa.
Pausa à moda de Machado de Assis, para discutir o Tempo e o Amor
O leitor já terá terá percebido que a lógica que orienta o sentido das letras - essa em que o estado de espírito do eu perde espaço quando está enfraquecido ou ganha força quando está redivivo pelo amor - é também a que dá a cor dos arranjos musicais. Lá pelos três minutos e vinte, os Móveis retêm o tempo e o andamento da canção, e o eu que canta reflete, ato subjetivo por natureza, que também ignora o tempo cronológico: "Eu que nunca discuti o amor / Não vejo como me render / Ah será que o Tempo tem tempo pra amar / Ou só me quer tão só". Trata-se da dúvida que nos segue a todos: devemos nos render à passagem inexorável do Tempo? Será que o Tempo já experimentou o Amor, para atropelá-lo de forma tão brutal? Sugiro que o eu que canta deve ter descoberto que, na perspectiva do Tempo, tudo deve ser deixado para trás. Está nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, quando Natureza ou Pandora, que representa o fatalismo das leis naturais, diz ao defunto-autor:
O eu que canta passa longe do egoísmo: sua canção começou com a expressão "a gente", que aponta dois amantes integrados num terceiro, a relação. O Tempo é o inimigo desse casal porque representa a finitude, a fatalidade; o eu que canta toma para si, portanto, a responsabilidade de desafiar essa lei natural - que só pode ter sido escrita por alguém muito egoísta, como a Natureza, que quer ver todos sós - ou alguém que nunca pôde experimentar o Amor.
Daí a conclusão: "E então se tudo passa em branco eu vou pesar / A cor da minha angústia e no olhar / Saber que o Tempo vai ter que esperar". Se a passagem do Tempo é inevitável, se a angústia do eu - experimentada em "Aluga-se-vende" - foi tão marcante, por que render-se ao Tempo? Ele vai ter de esperar.
A charada: o refrão e o Amor
No refrão, observa-se a submissão do tempo ao eu: "O tempo engatinhar / do jeito que eu sempre quis / se não for devagar / que ao menos seja eterno assim". O tempo engatinhando, de quatro, é evidentemente a imagem de uma suposta vitória do eu, mas não deixemos de lado a imagem misteriosa da esfinge, figura mitológica que desafia heróis trágicos - como o eu da canção. Domar o tempo, fazê-lo engatinhar: eis aí a peripécia do eu, em nome do amor; é preciso descobrir a charada que o Tempo propõe ao eu. E uma outra, que o próprio eu propõe ao Tempo, vencendo-o.
Os dois últimos versos talvez contenham a proposição do mistério a solucionar: mesmo que o tempo não passe devagar - trecho que, por si só, já aponta para a impossibilidade de vencê-lo completamente -, "que ao menos seja eterno assim". Assim como? temos de perguntar.
Uma resposta possível é a de que o tempo do amor é eterno, porque amar é experimentar a sensação de infinitude. Os casais mais apaixonados planejam o futuro, os nomes dos filhos e a casa em que envelhecerão juntos, porque, para quem ama, o tempo é infinito - assim como o amor que experimentam. Desse modo, no refrão, o tempo eterno é a sensação subjetiva de tempo experimentada pelo eu que canta. Todos sabemos que o tempo do relógio não corresponde ao nosso tempo interno.
Cabe lembrar, também, que a sensação de passagem do tempo está intimamente relacionada com o espaço. O amor do refrão é infinito porque é experimentado no aqui e no agora de cada execução da canção, eternizando-se, espalhando-se no espaço e no tempo. Mais do que isso: a passagem do tempo é eterna repetição; na canção, o refrão é repetição. E é exatamente ele o ponto alto da canção "O Tempo", em que a platéia dança com os Móveis e os aranjos crescem como se encarnassem a sensação amorosa. Assim, experimentamos o Amor no exato momento da audição da canção e retornamos a ele por meio do refrão, esquecendo-nos de que o tempo passa.
É essa a vitória definitiva do eu que canta: cada vez que escutamos a canção "O Tempo", dos Móveis Coloniais de Acaju, o amor experimentado se atualiza, se presentifica - isto é, não passa, superando, vencendo, definitivamente, o seu grande adversário: o tempo, agora com letra minúscula, porque ficou pequeno frente ao Amor - que é uma forma de perpetuação do presente sobre o futuro.
O desafio ao Tempo
Em "O Tempo", os arranjos são alegres e coloridos, os versos são de um eu completamente apaixonado. Pulemos, por instante, a primeira estrofe. "Parece que até jantei / Com toda a família e sei / Que seu avô gosta de discutir / E sua avó gosta de ouvir / Você dizer que vai fazer": uma análise rápida diria que esse eu fascinado com o ser amado é diferente do de "Aluga-se-vende". É o contrário: a concepção amorosa que está por trás das duas canções é a mesma. Nos versos acima, percebe-se que, quando ama, o eu se deixa tomar pelo outro: não basta conhecê-lo, amá-lo, é preciso também jantar com seus familiares, porque estes são parte do ser amado - e o eu quer possuí-lo todo. Talvez por isso a relação amorosa cujo final observamos em "Aluga-se-vende" não tenha dado certo: lá, o eu e o outro não compunham um só, não eram da mesma família, já não partilhavam mais nada.
Voltando aos primeiros versos, em que está proposto o desafio da canção: "A gente se deu tão bem / Que o Tempo sentiu inveja / Ele ficou zangado e decidiu / Que era melhor ser mais veloz / E passar rápido pra mim". Alguns detalhes precisam ser observados: primeiramente, notemos que a canção começa com o termo "a gente", em que estão contidos o eu e o ser amado por ele, o que confirma a hipótese anterior: o eu só está amorosamente completo se estiver em plena conjunção com o outro, a ponto de eles serem um terceiro.
Além disso, é preciso perceber que a palavra Tempo, com a letra maiúscula, está personificada - podemos dizer que ele é o grande rival do eu que canta. A canção ganha, assim, dimensão trágica: o eu, a quem o Destino presenteou com o amor, é um perseguido pelo Tempo, que lhe tem inveja. O eu está investido, portanto, de uma dimensão heróica: resistirá ao tempo por causa do amor. E vencerá, como veremos - talvez seja esse o encanto da canção.
Não adiantemos as conclusões e deixemos, de lado, o refrão. Nos versos "Espero o dia que vem / Pra ver se te vejo e faço /O Tempo esperar como esperei / A eternidade se passar / Nos meus segundos sem você": aqui, o eu desafia o Tempo o tempo todo (a repetição é proposital), atrasando-o. Quando está sem o ser amado, o eu mede a passagem do tempo em segundos. Embora, desse modo, a sensação de correr do tempo seja mais aflitiva, a percepção de superação do tempo é mais constante. Notemos: para o eu apaixonado, cada segundo superado, por mais que seja eterno, o aproxima do dia que virá, em que estará ao lado do ser amado.
Vencendo o Tempo, esse teimoso que não para
A melhor estrofe da canção é a seguinte, "Agora eu já nem sei / Se hoje foi anteontem / Me perdi lembrando o seu olhar / O meu futuro é esperar / Pelo presente de fazer", que, ao final, engata no refrão. Iniciada pelo advérbio "agora", a estrofe contém a sensação de estar ao lado do eu amado: o tempo para, fica suspenso, a ponto de o eu não saber diferenciar o hoje do anteontem, a ponto de ficar perdido no olhar do ser amado. No futuro, a perspectiva de agir por meio do amor, retomando o desafio ao tempo, fazendo-o engatinhar. O refrão ganha, nesse momento, uma variação: "O Tempo engatinhar / do jeito que eu sempre quis / distante é devagar / perto passa bem / depressa assim / pra mim". Ora, está aí a explicação do desafio do eu, cujo universo subjetivo ou afetivo, fortalecido pelo amor, é capaz de desafiar o tempo cronológico, cronometrado. Em "Aluga-se-vende", esse universo estava enfraquecido pela falta de amor, por isso a dimensão material ganhava espaço: os objetos que deveriam ser divididos na separação, a força do dinheiro, a briga pelo espaço da casa que deixava de ser lugar de partilha para ser campo de batalha.
"Se o Tempo se abrir, talvez / Entenda a razão de ser / De não querer sentar pra discutir / De fazer birra toda vez / Que peço um tempo pra me ouvir". Agora, o Tempo é tratado como um ser teimoso, birrento, imaturo - o Tempo é como os adolescentes, que só querem avançar incessantemente, sem parar para conversar, para avaliar o passado. O Tempo não tem paciência para aprender com a passagem do tempo. Abrir-se talvez signifique rever-se, reavaliar-se, mudar, mas o Tempo é incapaz de fazê-lo: como ele é sempre igual, com o mesmo ritmo objetivo, é um grande conservador, incapaz de experimentar o diferente; embora esteja em constante renovação, o Tempo é sempre o mesmo, por isso não tem nem pode ter a competência de amar: quem ama, ao menos na concepção do eu que canta, tem de estar pronto para o diferente, para o outro que vem para formar um terceiro, síntese da entrega amorosa.
Pausa à moda de Machado de Assis, para discutir o Tempo e o Amor
O leitor já terá terá percebido que a lógica que orienta o sentido das letras - essa em que o estado de espírito do eu perde espaço quando está enfraquecido ou ganha força quando está redivivo pelo amor - é também a que dá a cor dos arranjos musicais. Lá pelos três minutos e vinte, os Móveis retêm o tempo e o andamento da canção, e o eu que canta reflete, ato subjetivo por natureza, que também ignora o tempo cronológico: "Eu que nunca discuti o amor / Não vejo como me render / Ah será que o Tempo tem tempo pra amar / Ou só me quer tão só". Trata-se da dúvida que nos segue a todos: devemos nos render à passagem inexorável do Tempo? Será que o Tempo já experimentou o Amor, para atropelá-lo de forma tão brutal? Sugiro que o eu que canta deve ter descoberto que, na perspectiva do Tempo, tudo deve ser deixado para trás. Está nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, quando Natureza ou Pandora, que representa o fatalismo das leis naturais, diz ao defunto-autor:
Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que vem. O minuto que vem é forte, jocundo, supõe trazer em si a eternidade, e traz a morte, e perece como outro, mas o tempo subsiste. Egoísmo, dizes tu? Sim, egoísmo, não tenho outra lei. (Fragmento do capítulo VII, "O Delírio")
Daí a conclusão: "E então se tudo passa em branco eu vou pesar / A cor da minha angústia e no olhar / Saber que o Tempo vai ter que esperar". Se a passagem do Tempo é inevitável, se a angústia do eu - experimentada em "Aluga-se-vende" - foi tão marcante, por que render-se ao Tempo? Ele vai ter de esperar.
A charada: o refrão e o Amor
No refrão, observa-se a submissão do tempo ao eu: "O tempo engatinhar / do jeito que eu sempre quis / se não for devagar / que ao menos seja eterno assim". O tempo engatinhando, de quatro, é evidentemente a imagem de uma suposta vitória do eu, mas não deixemos de lado a imagem misteriosa da esfinge, figura mitológica que desafia heróis trágicos - como o eu da canção. Domar o tempo, fazê-lo engatinhar: eis aí a peripécia do eu, em nome do amor; é preciso descobrir a charada que o Tempo propõe ao eu. E uma outra, que o próprio eu propõe ao Tempo, vencendo-o.
Os dois últimos versos talvez contenham a proposição do mistério a solucionar: mesmo que o tempo não passe devagar - trecho que, por si só, já aponta para a impossibilidade de vencê-lo completamente -, "que ao menos seja eterno assim". Assim como? temos de perguntar.
Uma resposta possível é a de que o tempo do amor é eterno, porque amar é experimentar a sensação de infinitude. Os casais mais apaixonados planejam o futuro, os nomes dos filhos e a casa em que envelhecerão juntos, porque, para quem ama, o tempo é infinito - assim como o amor que experimentam. Desse modo, no refrão, o tempo eterno é a sensação subjetiva de tempo experimentada pelo eu que canta. Todos sabemos que o tempo do relógio não corresponde ao nosso tempo interno.
Cabe lembrar, também, que a sensação de passagem do tempo está intimamente relacionada com o espaço. O amor do refrão é infinito porque é experimentado no aqui e no agora de cada execução da canção, eternizando-se, espalhando-se no espaço e no tempo. Mais do que isso: a passagem do tempo é eterna repetição; na canção, o refrão é repetição. E é exatamente ele o ponto alto da canção "O Tempo", em que a platéia dança com os Móveis e os aranjos crescem como se encarnassem a sensação amorosa. Assim, experimentamos o Amor no exato momento da audição da canção e retornamos a ele por meio do refrão, esquecendo-nos de que o tempo passa.
É essa a vitória definitiva do eu que canta: cada vez que escutamos a canção "O Tempo", dos Móveis Coloniais de Acaju, o amor experimentado se atualiza, se presentifica - isto é, não passa, superando, vencendo, definitivamente, o seu grande adversário: o tempo, agora com letra minúscula, porque ficou pequeno frente ao Amor - que é uma forma de perpetuação do presente sobre o futuro.