Nunca vou me esquecer de um momento marcante da minha pré-adolescência: o dia em que ganhei uma suspensão, no colégio de freiras, por levar “revistas pornográficas” para a classe. Na quinta série, eu reinava absoluto com uma edição da Chiclete com Banana (revista pornográfica?) e a história da Mara Tara, que matava os incautos de tanto chupá-los, em diálogos forrados de palavrões. Enquanto eu mostrava minha revista aos coleguinhas, no intervalo entre uma aula e outra, fui surpreendido pela inspetora, Dona Dirce, que bradava “Mas que baixaria é essa? Uma revista pornográfica na escola! E cheia de palavras de baixo calão! Vai pra diretoria já!”. A suspensão, além de umas palmadas e um bom castigo, rendeu-me a proibição de leitura daqueles “absurdos”.
Desde então, passei a me perguntar: qual é o problema de falar palavrão? Aquelas palavras me soavam muito mais expressivas do que quaisquer outras; não há raiva que possa ser posta pra fora com eufemismos bundões (melhor escrever “cuzões”) do gênero “Maldição!”, “Mas que diabos está acontecendo?” ou “Raios que me partam!”. O que eu queria mesmo ver e ouvir eram as piranhices da Sílvia, a perversão da Mara Tara e as andanças de cama em cama da Rê Bordosa – sem crises de consciência minhas ou delas. Parece contraditório, mas também sempre me encantei com poesia, inclusive a dos românticos, cheias de peitinhos pulsantes, moças seminuas sonolentas e nada de penetração ou palavrão. Espero que os leitores não me entendam mal, pois não estou defendendo pornografia gratuita (aliás, toda obra do Angeli passa longe disso) para pré-adolescentes, muito menos o uso do palavrão em situações em que ele não é adequado; tenho a impressão, contudo, de que, relegar as “palavras de baixo calão” à sombra da marginalidade é, muitas vezes, fechar os olhos – por preconceito ou repressão mesmo – a alguns conteúdos concretos da realidade em que vivemos.
Como já contei aqui nesta coluna, um dia, ouvi o Viva do Camisa de Vênus, e a minha vida mudou. A literatura “oficial”, para mim, ficou em segundo plano, perdeu espaço para Joana D’Arc, que ficava excitada quando pegava na lança. Não era só Marcelo Nova, contudo, que saciava minha sede de palavrão – que prefiro entender como minha sede de língua portuguesa real, cotidiana – mas muitas outras bandas que, umas mais outras menos, traziam para a canção brasileira uma linguagem com que eu me identificava. Basta lembrar, só a título de exemplo, do sonoro “Vão se fuder!” à oncinha pintada, à zebrinha listrada e ao coelhinho peludo de "Bichos Escrotos" dos Titãs; ou do “general de dez estrelas, que fica atrás da mesa com o cu na mão”, em "Faroeste Caboclo", da Legião Urbana. Pode ser que meu olhar esteja embaçado pela nostalgia da pré-adolescência, mas tenho a nítida impressão de que os roqueiros brasileiros da década de oitenta renovavam o mercado fonográfico nacional superando os pretensos “monstros sagrados da MPB” não só nas vendas de disco, mas também na revitalização do vocabulário. A censura dava seus últimos suspiros, e não há dúvidas de que devemos à turma da MPB as primeiras espetadas que ela levou; o golpe de misericórdia, contudo, coube aos roqueiros. No Estúdio Showlivre do Camisa de Vênus, inclusive, Marcelo Nova declarou ter plena ciência do papel que tinha, com todos os palavrões do Viva: oxigenar a linguagem da canção popular brasileira homenageando um autor maldito de nosso teatro, Plínio Marcos, cujas peças estão cheias de palavrões.
Quando AD Luna, na coluna de 03 de outubro de 2007, “O rock e a terceira idade”, ria da molecada que se indigna com a história que o rock já construiu, lembrei-me de que uma das demonstrações de maturidade – envelhecimento jamais – da literatura brasileira é o fato de ela construir uma tradição com base em seus próprios escritores do passado, dispensando, em certa medida, modelos de países estrangeiros. Não será diferente com o rock nacional: embora boa parte da crítica insista em discriminar, de um lado, “música popular” e, de outro, “rock brasileiro”, acredito que nosso rock é parte da tradição de música popular brasileira – porque, por aqui, ele já ganhou matizes bastante particulares e, sobretudo, porque já contribuiu sensivelmente em termos formais, com aquela renovação do vocabulário. É música jovem, sem dúvida – eis um traço imprescindível do rock; não será jamais música só para jovens. O “jovenzinho roquista” de que falava AD Luna não é jovem: já envelheceu de preconceito e imobilidade. Rock – sobretudo no Brasil – é reinvenção por meio de permeabilidade a outros gêneros.
Além disso, lembrei-me também do texto de Clemente a respeito do funk carioca, de 27 de setembro: não serão os palavrões uma das primeiras barreiras à entrada dos mais conservadores nesse universo ainda pouco entendido e muito atacado da canção brasileira? Uma boa hipótese é a de que o suposto “decoro” das canções de massa está diretamente associado à sua higienização: elas não têm palavrão, não tem mundo real, o que me leva a crer que, ali, no funk – que conheço pouco, confesso – pulsa um mundo mais concreto que, por muitos motivos, não queremos ver. Talvez seja um mundo parecido com aquele que Marcelo Nova viu nas peças de Plínio Marcos. Em Barrela, por exemplo, a ação se passa numa cadeia, em que um jovem de classe média alta, preso por uma noite aprontando alguma, acaba sendo estuprado pelos companheiros de cela. O texto surpreende pela linguagem agressiva, talvez inédita na dramaturgia brasileira – e expõe uma realidade impensável nos programas de horário nobre e nos bancos escolares.
Não faltam à nossa literatura, aliás, escritores consagrados, “oficiais”, que usaram e abusaram de palavrões: confira, por exemplo, alguns poemas satíricos de Gregório de Matos Guerra, o Amor Natural, de Carlos Drummond de Andrade (olhe os títulos dos poemas: “No mármore de tua bunda”, “A carne é triste depois da felação” ou ainda “Ó tu, sublime puta encanecida”) e o soneto “A cópula”, de Manuel Bandeira, citado por Zuenir Ventura no livro Minhas histórias dos outros.
Apesar de todo esse histórico no universo da literatura e do teatro, custou à canção brasileira assimilar o palavrão. Certamente, muita gente desconhece esses textos, como desconhece “Ângela”, de Raul Seixas, primor de poema erótico; certamente, a gente não sabe que o verso “I love to turn you on”, da canção "A day in life", dos Beatles, era uma ousadia para a época. Da mesma forma, na primeira vez em que ouvi My way, aos dez anos, no disco Viva, achei que aquela canção infestada de palavrões era de autoria de Marcelo Nova. O que nos falta – e falta, sobretudo, aos mais jovens – é respeito a nossa língua verdadeira e cotidiana, cheia de palavrões e sujeiras de toda ordem, que não a emporcalham, mas a enriquecem, da mesma forma que fizeram com a canção brasileira, renovando-a quando ela carecia de vitalidade. O que nos falta é investigar a história de nossa canção e de nossa literatura e perceber que, nelas, o que se fala, muitas vezes, não é a nossa língua, mas uma outra, oficial, pretensamente culta, toda decorosa, melada e, portanto, bastante falseada. Não adianta fugir dessa língua real nem tentar calá-la. Fui suspenso da escola por ler Chiclete com Banana. Nas férias, meu pai alugou um apartamento em Peruíbe para passarmos o verão. Na praia, minha irmã arrumou um namoradinho que ouvia bandas que eu ainda não conhecia e que ouviria pelo resto da vida: Plebe Rude e Ira! Fuçando nos armários do apartamento, descobri uma coleção de jornais velhos, que li de cabo a rabo, ao longo daquele verão: era o Pasquim, um ancestral do Chiclete com Banana.
2 comentários:
Que ironia encontrar este post. Hoje tive que dar satisfações para um pai de aluno por trabalhar "Faroeste caboclo" com 5ª séries. O pai grifou todos os palavrões e disse que achava impróprio. Alegava que apesar de morar na periferia, seus filhos não tinham contato com isso. O triste foi explicar, explicar, explicar e perceber que de nada adiantava, pq ele mesmo não entendia a letra.
Vamos esconder os textos e passar análise sintática. É o que a sociedade quer :(
:) Legal. Gostei.
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