sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

“Eu humano”: poesia de rock em língua portuguesa

Se o leitor navegar pelo My Space do Andreas Kisser, terá uma das mais felizes surpresas do rock brasileiro – e mundial, porque quando se trata do Sepultura e de seus integrantes, tudo toma proporções globais. Trata-se de “Eu humano”, (no link, apresentada ao vivo no Estúdio Showlivre) canção que faz parte do primeiro trabalho solo do guitarrista, Hubris I & II. Já faz algumas colunas que tenho citado o Sepultura; afirmei, por exemplo, que a banda faz rock brasileiro em inglês e que analisaria essa declaração polêmica (que, se fosse levada às últimas conseqüências, renderia uma tese de doutorado). Mas “Eu humano” tem letra em português – e esse dado simples faz que as obras do Sepultura e de seu guitarrista ganhem complexidade ainda maior.


A primeira estrofe de “Eu humano” nada mais é do que uma seqüência de orações cujo sujeito “eu” é seguido de verbos intransitivos, isto é, verbos cujas ações não têm objeto. Traduzindo e exemplificando para quem não se lembra das aulas de gramática: nas frases “Eu ataco” e “Eu acuso”, por exemplo, as ações expressas pelos verbos não recaem sobre ninguém. Quem é que foi atacado pelo eu que canta? Quem foi acusado por ele? A impressão que fica, devido à repetição do pronome e à intransitividade dos verbos, é a de que as ações cometidas pelo eu que canta não tem destinatário específico – ao contrário: são feitas para que o próprio Eu, incansavelmente repetido, se afirme, e serão espalhadas indiscriminadamente pelo mundo em que ele vive. Beleza de composição poética, que se amarra ao título: assim é o homem, cujas ações só respondem aos interesses dele próprio, sem preocupação com os efeitos que elas terão sobre os outros.


A segunda estrofe, contudo, não repete o modelo da primeira e enriquece o texto: embora ainda seja repetido à exaustão, no início de cada verso, o pronome “eu” é modificado por outras classes de palavras, como substantivos ou adjetivos: “Eu igreja / Eu sagrado / Eu tortura / Eu escravo”. As associações, agora, são inusitadas, como acontece na grande poesia: o termo “eu” é adjetivado, por exemplo, pelo substantivo “tortura” – algo que chamaríamos de “desumano”, mas que, na canção de Andreas, é característica paradoxal dos homens e inerente a eles. O princípio de composição da letra pode então ser resumido, até aqui, da seguinte maneira: o que constrói o “Eu humano” não são só as ações que ele comete intransitivamente na primeira parte; também são da natureza desse eu as contradições enumeradas da segunda. Os leitores atentos da letra descobrirão, entre as frases e as expressões, pequenas unidades de sentido que, juntas, compõem diferentes raios refletidos pelo prisma que é a humanidade: “Eu comando / Eu proclamo / Eu reclamo / Eu estrago”, do início, ou “Eu proveta / Eu macaco / Eu planeta / Eu espaço”, da segunda parte – tentando sinalizar, como já vimos, para algo que está além do homem, mas sempre retornando a ele por meio da repetição compulsiva do pronome.


Na última estrofe, surgem, subitamente, frases mais organizadas – “Fabrico as doenças de outro mundo / Quebro os limites em um segundo / Desenho fronteiras e planto insultos / Eu sujo a minha casa num clima imundo”. Gosto mesmo é de viajar na análise e imaginar que a complexidade das frases, em comparação com as das estrofes anteriores, sugere uma pretensa evolução do Eu humano – mas que culmina, no último verso, com a retomada do pronome e com a sujeira da própria casa; está, assim, concluída a idéia de que o Eu humano, apesar da pretensão de transcender o universo particular, sempre acaba por retornar a si mesmo, à própria incapacidade de cuidar do espaço que ele, de fato, pode modificar: aquele que o circunda, a própria casa.


A multiplicidade de leituras e associações de sentido que os versos de “Eu humano” sugerem permite afirmar que estamos diante de uma letra de riqueza poética rara no rock brasileiro – basta reler a “Consideração do Poema”, em que Carlos Drummond de Andrade afirma que “As palavras não nascem amarradas / Elas saltam, se beijam, se dissolvem” para entender a habilidade de Andreas, sobretudo na segunda estrofe; é nela que descobrimos que o mesmo eu que é igreja e sagrado é também tortura e escravo. A recorrência de palavras paroxítonas, associada às rimas, garante a cadência do texto – que pode ser interpretada como expressão de que o Eu humano se repete e repete os próprios erros e contradições infinitamente, embora mude as ações e até ganhe alguma complexidade, ao final. A entonação, que vai crescendo rumo ao agudo e cujo ponto alto é o final da segunda estrofe (“Eu na guerra”), cria a expectativa de que se chegará a algum lugar – frustrada, obviamente, pela retomada final, mas sempre em aberto, porque o homem não abandona as próprias ambições.


Finalmente, o tempo utilizado em todos os verbos da canção mostra ao ouvinte como é curto o horizonte do Eu humano: só o presente, nada além dele, sem passado – o que indica que o homem, apesar de ter escrito a própria história, não aprendeu nada com ela – e sem futuro – condição bestial, que faz do homem vítima do próprio caos.


Abusei dos termos técnicos na análise das linhas anteriores para chegar à seguinte afirmação: “Eu humano” é um dos pontos mais altos da história do metal brasileiro. Andreas já tinha ensaiado os temas que explorou acima há quinze anos, por exemplo, em “Territory” – mas a letra em inglês tinha nas figuras da propaganda ou do ditador os agentes da miséria dos homens; “Eu humano” ganha em profundidade na medida em que não procura no “outro” um responsável, mas no próprio eu, o que amplia a reflexão. Mais do que isso: deixemos de lado os motivos que levaram à saída de Max Cavalera do Sepultura – afinal o que nos interessa neste texto é a obra da banda e, principalmente, de Andreas Kisser – e admitamos que, principalmente desde Against (1998), mas também antes dele, Andreas vem ganhando experiência e relevância como letrista; lembremo-nos, também, de que o último CD da banda dialogou com A Divina Comédia, de Dante Alighieri – projeto ambicioso, que merecerá coluna só para ele – e que o próximo o fará com Laranja Mecânica, de Anthony Burgess, texto cujos neologismos em língua inglesa devem ter sido um bom laboratório para que Andreas criasse em português.


O movimento que faz de “Eu humano” uma obra-prima é, portanto, o mesmo que transformou o Sepultura numa das bandas mais importantes do Brasil e do mundo: a sede pela experimentação de novos temas e sonoridades, sempre à cata daquilo que a definia como banda de música brasileira, porque as letras em inglês a afastavam, de certa forma, desse universo. É sabido que foi Andreas quem trouxe muitas das influências musicais e temáticas que permitiram ao Sepultura oxigenar-se e renovar-se no álbum Schizofrenia (1987) e que culminaram com as experimentações iniciadas em Arise (1991), com “Meaningless Movements”, e aprofundadas em Chaos AD (1993) e Roots (1996) – trabalhos em que o “instinto de nacionalidade”, para plagiar Machado de Assis, batia forte, sobretudo em “Refuse/resist”, “Kaiowas” e “Manifest”, do primeiro, e em todas as canções do segundo, mas sobretudo em “Ratamahatta”, em que já se ensaiava uma aventura na língua materna.


Andreas teve mais espaço para experimentar, depois desses trabalhos marcantes, algo que levanto agora, mas cuja análise detalhada fica para uma outra vez: a idéia de que era possível explorar, em língua portuguesa, temas como alienação, violência, caos, guerra e poder das corporações. Os fãs do Sepultura hão de concordar comigo: todos tínhamos a impressão de que esses assuntos eram mais adequados à língua inglesa, às suas frases breves, sem conectivos, bem à moda das letras de metal; aos fãs desse gênero, a língua portuguesa talvez parecesse excessivamente empolada, contaminada pela linguagem nebulosa dos nossos poetas mais conservadores – sobretudo os anteriores ao Modernismo –, talvez provinciana demais para explorar aflições de ordem mundial. Pois estávamos todos errados: em “Eu humano”, mergulha-se no legado da miséria humana por meio da repetição compulsiva do pronome, do tempo verbal e das paroxítonas; observa-se com horror a eterna ambição dos homens, por meio das entonações recorrentes; lamenta-se a nossa condição paradoxal, por meio das associações inusitadas do vocabulário – todos recursos dignos das nossas melhores canções, com os quais Andreas Kisser faz surgir um novo caminho a trilhar na procura da poesia de rock em língua portuguesa.

Um comentário:

Anônimo disse...

esse texto merece palmas! Palmas para esse texto! De pé...