Tem alguma coisa a ver a letra de “O tempo não pára”, do Cazuza, com Memórias Póstumas de Brás Cubas, do Machado de Assis? O debate proposto por Carlos Drummond de Andrade, no poema “Eu-etiqueta”, não é o mesmo de “Geração Coca-Cola”, da Legião Urbana? “A hora e a vez do cabelo nascer”, título de uma música dos Mutantes, não pode ser uma citação ao conto “A hora e vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa?
Durante muito tempo eu achei que a resposta a essas perguntas seria outra viagem errada numa mesa de boteco, com um monte de gente criando teorias malucas a respeito das relações entre literatura e rock. É claro: como meu pessoal e eu gostávamos de literatura e também adorávamos rock, queríamos que essas duas formas de arte tivessem pontos de contato. Não podia dar outra: a gente forçava a barra até que surgisse aquilo que a gente queria. Se quiséssemos ver, sei lá, uma história de amor em “Smoke on the water”, lá estaria ela, escondida nas entrelinhas.
Não funciona assim – acabei aprendendo depois, na faculdade de Letras. Antes desse período, na escola, o problema, era o seguinte: algum professor até analisava músicas da MPB nas aulas de literatura – aquela coisa de ouvir umas canções do Chico Buarque para entender Cantigas de Amigo do Trovadorismo, ou estudar “O quereres”, do Caetano Veloso, para observar as antíteses à moda barroca. E isso era legal. Mas eu sempre me perguntei “e o rock?”, porque a verdade era a seguinte: enquanto os professores analisavam Caetano e Chico na aula, fora da escola a gente ouvia Legião Urbana, Paralamas, Ira!, Capital Inicial, Plebe Rude, Camisa de Vênus – muito Camisa de Vênus... como é que a tia Biloca da escolinha interpretaria o refrão “Ô Sílvia, piranha!”?! Não tinha como, e a gente adorava músicas como essa.
Na faculdade de Letras, acabei vivendo o mesmo dilema: enquanto a gente ouvia Chico Science nas festas, analisava, em classe, a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias; disseram-me para valorizar as gerações anteriores e eu descobri Jorge Mautner e as “Cinco bombas atômicas”, mas só se pensava em estudar Chico e Caetano (de novo!).
Oquei, vamos direto aos pontos: 01) Eu adoro a literatura chamada de “culta”, afinal, fiz Letras. Sou fã de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Camões, todos os de Andrades (Mário, Oswald, Carlos Drummond), Clarice Lispector, enfim, coloque aí o nome que, para você, representa a literatura culta de Língua Portuguesa. Virei professor de Literatura, também; 02) Adoro igualmente – ou mais – o rock, principalmente o brasileiro, o dos anos 80, esse que voltou à moda recentemente. Graças ao rock – e não aos clássicos – apaixonei-me por gramática, análise de textos, poesia, romances, contos, enfim, o universo da Literatura e da Língua Portuguesa. Em outras palavras: o Pânico em SP é que me levou ao Grande Sertão; a Música Urbana é que me levou aos regionalistas; Eduardo e Mônica é que me fizeram entender quem realmente eram Bentinho e Capitu; 03) Minha hipótese: é possível fazer aproximações entre a literatura culta e o rock brasileiro dos anos 80, desde que alguns critérios sejam respeitados, para não entrar numa viagem total, com livres associações psicodélicas ou psicotrópicas.
O projeto desta coluna é exatamente este: fazer aproximações entre literatura e rock. Elas existem, basta que as procuremos. Para mim, é uma questão de honra analisar com a mesma seriedade – não precisa ser com a mesma sisudez – “Dom Casmurro” e “Tempo Perdido”. É uma maneira de alçar o rock à importância da literatura culta; é uma maneira de deixar a literatura mais saborosa, mais próxima do mundo em que a maioria das pessoas vive.
Fato é o seguinte: ouve-se mais rock do que se lêem clássicos da literatura. Podemos juntar as duas coisas! Os acadêmicos que me desculpem, mas não há nada mais relaxante do que urrar e bater cabeça, na pista de um show de rock; os roqueiros que nunca leram um texto da literatura culta que me desculpem, mas o “Poema em linha reta” é a coisa mais rock n’ roll já escrita em Língua Portuguesa.
2 comentários:
Fantástico. Hoje mesmo, lendo um livro sobre a vida de Kurt Cobain, pensei em pesquisar e descobrir o que a literatura e o rock tem em comum e como a junção de ambos pode ser explosiva e tão linda e encantadora quanto os clássicos. Procurando pelo assunto, encontrei teu blog, que me encorajou! hahahaa
Estou cursando Letras e é um grande prazer poder unir a literatura com outros tipos de arte que também nos interessam. Parabéns por essa coluna e pela iniciativa.
Abraços, Ana Paula.
Você conhece a obra dos Lee Bats (1979-1985), essa banda de rock, completamente esquecida, desenvolveu o conceito de rock-poeia... musicaram Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Baudelaire, Oswald,Camões entre outros...
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